fonte: O Globo
por Lígia Bahia, médica sanitarista e professora da UFRJ
O retorno do sarampo veio com menor número de mortes, mas expõe a perda de controle da situação sanitária.
Desandou, e não foi por falta de dinheiro ou culpa dos vizinhos venezuelanos. A fronteira que separa bolsonaristas e apoiadores de Maduro seria incapaz de deter a propagação de uma doença altamente contagiosa e devastadora. Mais de 80 países, incluindo Estados Unidos e Inglaterra, registraram surtos em 2019. Todos os novos casos ocorrem em áreas nas quais as taxas de imunidade são insuficientes. Contudo, as razões subjacentes às baixas coberturas vacinais diferem entre regiões e lugares. Desastres ou conflitos, danos aos serviços de saúde que acarretam descontinuidade da imunização de rotina e superlotação em acampamentos de populações deslocadas estão relacionados com casos de sarampo em alguns países. E os movimentos antivacina, que disseminam ideias sobre malefícios ou inocuidade da vacinação, tornaram-se influentes em determinadas localidades nos EUA, na Europa e no Japão. No Brasil, o uso do conhecimento científico e a boa gestão permitiram que fôssemos reconhecidos como país livre de sarampo em 2016. Mas, em 2018, a cobertura para a vacina tríplice viral (sarampo, rubéola e caxumba) estava abaixo da recomendada pela Organização Mundial de Saúde.
As razões para a incidência de novos casos são difusas. Tivemos de tudo um pouco: grandes desastres, piora das condições de funcionamento da rede pública de saúde, desorganização das equipes de vigilância epidemiológica e empobrecimento da população. Em contrapartida, os militantes brasileiros antivacina são inexpressivos; o SUS, embora continuamente deteriorado, não é terra arrasada; e a reentrada do sarampo foi distante do epicentro do rompimento das barragens. Portanto, identificar um, apenas um, responsável é inútil. Estrangeiros são transmissores de sarampo. No passado, brancos europeus foram os portadores do vírus que dizimou nações indígenas nas Américas. Atualmente, o padrão se repete, a doença se mantém circulando, por meio do contato de viajantes ocasionais ou migrantes de diversas origens com populações não imunizadas. Contudo, a interrupção da transmissão da doença pertence ao âmbito da soberania nacional. É tarefa de cada país desenvolver esforços para manter níveis adequados de vacinação. Terraplanismo e cortes de verbas para saúde e pesquisas dificultam a percepção das dimensões catastróficas da redução das coberturas vacinais. Sem capacidade para antecipar e responder prontamente a problemas como febre amarela e sarampo, dificilmente teremos condições de proteger a população das ameaças da rubéola e de novas epidemias. Independência para impedir mortes evitáveis requer investimentos em produção de vacinas, manutenção de estoques adequados, cuidados com transporte e preservação dos imunizantes e um SUS abrangente e qualificado. São ações básicas que deveriam ser priorizadas por todos os governos. Colorações ideológicas e partidárias são menos importantes do que a sobrevivência. Em outras nações, as campanhas de vacinação estão em curso e envolvem presidentes, primeiros-ministros e cientistas. O contraste com a situação nacional é evidente. Uma das melhores iniciativas pró-vacina dos últimos tempos é o filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. O título da obra, “Bacurau”, refere-se ao nome de uma cidade ficcional. Lá tem SUS, posto de saúde com médica, vacinas, que chegam bem acondicionadas, e atividades de controle de vetores.
A doutora Domingas (interpretada por Sonia Braga) utiliza condutas eficazes para cuidar da saúde de seus pacientes. Valoriza as vacinas, adverte contra o remédio tarja negra (que “causa leseira”) e atende sem discriminação a prostituta e a inimiga. “Bacurau” e seus personagens são imperfeitos, corajosos, menos desiguais e vacinados, uma combinação de atributos que permite proclamar independência ou morte.