fonte: AMB
Quanto custa um diploma de medicina? Para quem estudou no exterior e foi reprovado no Revalida, empresas intermediadoras chegam a cobrar R$ 130 mil para abrir as portas de universidades privadas e facilitar o processo para a revalidação do diploma médico no Brasil. O esquema só é possível graças a instituições públicas de ensino como a Universidade Federal do Mato Grosso, que terceirizam, por meio de convênios, a oferta de cursos de estudos complementares para faculdades particulares.
Pela lei, o processo de revalidação de diplomas deveria ser realizado exclusivamente por universidades públicas. Também pela lei, o objetivo dos estudos complementares deveria ser complementar conhecimentos específicos da grade curricular brasileira aos aprovados na revalidação. Considerando os mais 60 mil brasileiros que estudam em escolas de medicina, além de outros 60 mil que já se formaram, este cenário criou um mercado de bilhões de reais.
Funciona assim: as empresas intermediadoras atuam junto ao diplomado em medicina no exterior que voltou ao Brasil, mas que foi reprovado nos processos oficiais de revalidação de diplomas e também não obteve a classificação necessária para ocupar uma das vagas que a universidade pública oferece para o curso de complementação.
Para conseguir um lugar nas particulares, que oferecem o mesmo curso por meio de convênio com as públicas, é preciso contratar a “consultoria” das empresas intermediadoras. Depois, recebem o registro e são habilitados para exercer medicina no Brasil sem terem passado por nenhum processo efetivo de comprovação de habilidades, o que coloca em risco a população.
A UFMT, por exemplo, possui cinco vagas para cursos de complementação, mas consegue multiplicar a oferta e chegar a 700 vagas, por meio de editais que credenciam faculdades particulares para realizar os cursos. Algumas estão há mais de 1.500km de distância da UFMT, sequer ofertam curso de medicina e, consequentemente, não possuem estruturas para aulas práticas. É o caso da Faculdade São Lucas de Caçapava, localizada no interior de São Paulo.
“Nesses locais, os formados no exterior acabam atuando no atendimento à população em hospitais públicos, supostamente supervisionados à distância por faculdades privadas. Uma grave irregularidade que coloca a população em risco, pois não poderiam atuar como médicos, já que não tiveram os conhecimentos devidamente avaliados. Tudo isso ocorre debaixo do nariz do MEC, que não fiscaliza com eficiência as atividades e nem possui regras claras para transferência e complementação”, afirma Diogo Leite Sampaio, vice-presidente da AMB.
Conta engorda, formação definha
Além dos valores pagos às empresas intermediadoras, os alunos precisam pagar as mensalidades da faculdade onde frequentarão as aulas durante o período de complementação, 12 ou 18 meses, conforme performance obtida nos exames iniciais. O esquema movimenta R$ 15 bilhões para as facilitadoras e garante renda extra para as instituições privadas, sem que elas tenham que pleitear novas vagas na graduação junto ao MEC.
O Centro Universitário de Caratinga (Unec-MG) é um exemplo: a instituição possui 40 vagas para o curso de medicina e solicitou à UFMT 180 vagas para complementação de estudos, 100 delas aprovadas. O resultado são salas superlotadas, assim como os cofres da Unec, e queda significativa na qualidade da formação dos alunos que ingressaram via vestibular.
“Nunca é demais lembrar que médicos malformados, se autorizados a atuar no Brasil, irão sobrecarregar o sistema de saúde, gerando custos desnecessários por conta de condutas equivocadas, gerando riscos à saúde da população mais pobre, que depende do SUS”, comenta Lincoln Ferreira, presidente da AMB.
O mercado, entretanto, é vasto. A estimativa é que 60 mil brasileiros estudam medicina somente em escolas médicas da Bolívia, do Paraguai e da Argentina, países que, por fazerem fronteira com o Brasil, são os preferidos dos estudantes. Sem contar os brasileiros espalhados em cursos de medicina em outros países da América Latina e do restante do mundo.
Na internet, as empresas intermediadoras do esquema, como a Revalmed e a Revalide, se apresentam como “consultorias estudantis” e divulgam claramente que realizam revalidação, complementações e transferências. Além disso, alegam, de forma descarada, que possuem contatos, contratos e convênios (com universidades públicas e privadas) para resolver a situação desses estudantes, garantindo sucesso na revalidação dos diplomas por meio das complementações.
Algumas dessas “consultorias estudantis” anunciam que já revalidaram milhares de diplomas. E que possuem contratos de exclusividade para a alocação dos egressos às vagas. Uma delas atua há mais de dez anos no mercado para “resolver a situação de quem precisa realizar uma transferência ou conseguir vaga em um curso de complementação para revalidar seu diploma médico estrangeiro em alguma universidade federal no Brasil”.
O esquema
Faculdades privadas, como a São Lucas de Caçapava, Unec e a Universidade Brasil, alvo da Operação Vagatomia, são a ponta operacional deste esquema. E há muitas outras espalhadas pelo País, operando em um esquema ilegal que só é possível graças às universidades públicas. É lá que tudo começa. Por lei, somente elas podem conduzir processos de revalidação de diplomas, incluindo os de medicina. A restrição é justamente para evitar que o processo seja mercantilizado e que seja criado um balcão de negócios para venda de revalidações.
“O esquema, no entanto, transformou a complementação em uma forma independente de revalidação, que permite facilidades não republicanas para quem consegue pagar pelas vagas nesses cursos. Tudo sem regras claras. Sem transparência. E sem regulamentação do MEC. Na prática, a complementação está sendo usada como uma nova modalidade para quem não conseguiu ser aprovado em outros processos de revalidação de diplomas”, alerta Diogo Sampaio.
Quem consegue a alocação nos cursos de complementação tem a aprovação praticamente certa, mesmo os que foram reprovados nas avaliações teóricas e práticas, pois sempre há novas chances. E, no final, se o aluno não tiver alcançado nota suficiente nas provas, passa por uma “avaliação de competências”, feita por meio de entrevista, que determinará se ele está apto ou não para receber o diploma a ser emitido pela universidade pública.
MEC – Inércia, prevaricação e anistia
Além de não possuir mecanismos que garantam uma avaliação sistemática sobre esses processos de revalidação de diplomas e não identificar esses esquemas, o Ministério da Educação (MEC) também é negligente quando recebe as denúncias e nada faz para apurar responsabilidades e punir os culpados.
Ao longo do primeiro semestre de 2019, a AMB e o Ministério Público Federal levaram ao MEC denúncias sobre essas irregularidades nos cursos de medicina. Infelizmente, nada foi feito, levando a AMB a pedir da demissão do secretário de Educação Superior do MEC, Arnaldo Lima, por prevaricação.
A AMB também apresentou as irregularidades no Grupo de Trabalho do Revalida, criado pela Secretaria de Educação Superior do MEC no final de maio. Apesar das denúncias, o MEC insistiu em incluir as faculdades privadas no processo de revalidação e pretende mudar a LDB para garantir isso, movimento que enfraquece o Revalida.
A AMB defendeu — e defende — melhor regramento, fiscalização e garantia de que o Exame Revalida, realizado pelo Inep, seja pré-requisito para qualquer processo de revalidação. “A falta de regras claras, transparentes e austeras por parte do MEC, e de mecanismos de controle e de fiscalização criaram este caos que estamos denunciando. A Vagatomia pode significar o nascimento da Lava Jato da educação, se as investigações avançarem nas demais denúncias recebidas”, avalia Diogo Sampaio.