fonte: O Globo
Pesquisadores ainda buscam uma vacina para a atual pandemia, mas o surgimento do novo coronavírus já provoca um avanço científico colateral. O medo de uma doença desconhecida e a amplitude da crise trouxeram de volta a discussão sobre a importância das imunizações, colocando em xeque movimentos de hesitação às vacinas. O tema foi levantado nesta semana pelo ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, ao criticar as pessoas que estão relaxando a quarentena e daqui a 15 dias se perguntarão o motivo do aumento de casos. Para ele, muitos que hoje “estão de joelho pedindo a Deus por uma vacina contra o coronavírus” no passado eram contra imunizações de gripe e sarampo. – O ponto de virada é essa epidemia sem precedentes na história recente. Nem a de meningite na década de 70 ou a de Sars tiveram essa disseminação global. É um tema complexo e novo – diz a antropóloga Marcia Couto, professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). No passado, quando não existiam imunizações contra doenças como sarampo, rubéola ou poliomielite, conta, as pessoas temiam os vírus. Aí vieram as vacinas. E na sequência, a propagação de desinformação e a perda de sentido coletivo ajudaram a reduzir as coberturas vacinais. Muita gente passou a minimizar a importância das imunizações ou duvidar de sua eficácia. – Agora voltamos ao medo do vírus. E a imprevisibilidade desse novo em alcance e letalidade mudou o foco de atenção das pessoas. Uma coisa é saber de um caso, outra é ver mais de mil pessoas morrerem em um país de um vírus para o qual não existe vacina – diz Marcia.
Isso já se refletiu na adesão à atual campanha de vacinação contra a gripe, iniciada dia 23 de março. Embora essa vacina não ofereça imunidade ao novo coronavírus, protege de complicações no quadro respiratório causadas pela influenza. Em uma semana de campanha, 8,7 milhões de idosos já tinham sido vacinados no país. Isso representa 42% da população idosa a ser alcançada. No ano passado, em 20 dias de campanha, o número mal batia 20% do público-alvo. Em São Paulo, a cobertura entre pessoas com mais de 60 anos chegou a 84% em oito dias , segundo a Secretaria de Estado da Saúde.
– No Rio, a cobertura já chegou a 70% entre idosos, enquanto no mesmo período do ano passado era de 10% – diz a médica Isabella Ballalai, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (Sbim). Para ela, o aumento da procura deriva da crença em um perigo reconhecido. – Quando a população não vê um risco concreto, fica aberta a notícias falsas e à ideia de que talvez seja besteira vacinar – afirma. – O novo coronavírus lembra as pessoas que catástrofes infecciosas podem acontecer. Especialistas tentam medir o alcance dessa mudança, mas ainda consideram cedo para dizer se ela se estenderá a outras vacinas.
– Na campanha da febre amarela, em 2018, também percebemos postos lotados. As pessoas ficaram com medo ao ouvir sobre mortes – lembra a médica Carolina Barbieri, da Universidade Católica de Santos.
Não se pode cravar ainda que o novo coronavírus provocará mudanças entre grupos radicais contrários à vacina, mas ela diz que isso pode mexer com pessoas antes céticas quanto à imunização. – O interessante nesses movimentos cíclicos sobre vacinas é que são ações baseadas em percepções subjetivas. A ciência mostra que a vacina traz benefício. E mostra que a Covid-19 é grave e tem uma letalidade que pode levar o sistema de saúde ao colapso – reforça.
Há dados mostrando enfraquecimento em movimentos de hesitação à vacina. Desde o último mês, grupos que se mostram contrários a vacinas na internet têm perdido engajamento, segundo a União Pró-Vacina, iniciativa do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP. A temática antivacina esteve presente em apenas 17% das postagens e seu engajamento foi 50% menor do que com o coronavírus.
– A pandemia está gerando um efeito de reflexão nas pessoas – diz João Henrique Rafael, idealizador da União Pró-Vacina e assessor de direção do IEA-RP.
Para manter o interesse, os grupos antivacina, que reúnem cerca de 20 mil pessoas no Facebook, passaram a levantar dúvidas sobre dados científicos relativos ao coronavírus. Levantamento realizado em março aponta que 65% das publicações das duas principais páginas antivacina no país tinham o coronavírus como tema e 78% delas traziam dados falsos e distorções.
– É uma tentativa de manter as pessoas engajadas. Buscou-se outro produto, mas que também desinforma. Não sabemos a razão de o Facebook permitir que esses grupos fiquem abertos – lamenta o especialista. Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) mostram que as vacinas salvam pelo menos 3 milhões de vidas anualmente.