fonte: BBC
Há pouco mais de três anos, a bibliotecária Letícia dos Santos Nascimento, de 40 anos, moradora de São Paulo, entrou para a fila do transplante. Desde os 11 anos, ela sofre de glomerulonefrite, inflamação do glomérulo, parte do rim responsável pela filtragem do sangue e a formação da urina.
Depois de vários tratamentos, em 1999 seus rins pararam de funcionar completamente e ela teve de iniciar a hemodiálise (procedimento que limpa e filtra o sangue). Em 2002, fez o primeiro transplante, tendo a mãe como doadora viva. Porém, seu corpo nunca aceitou muito bem o novo órgão e nem os medicamentos que precisava tomar.
Quase 15 anos depois, retomou a hemodiálise e agora aguarda um doador compatível — no Brasil, pelos dados de dezembro de 2019 do Registro Brasileiro de Transplantes (RBT), são mais 37,9 mil pacientes ativos na mesma situação.
A grande questão é que, pelo menos por enquanto, a pandemia causada pelo novo coronavírus está afetando a realização deste tipo de procedimento em todo o país.
Segundo a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO) e o Sistema Nacional de Transplantes (SNT), a diminuição no número de doadores, entre 1º de março e 18 de abril, na comparação com o mesmo período do ano passado, é de 9% e a no de transplantes, 20%.
“Eu até prefiro que a cirurgia não aconteça agora, pois não gostaria de ficar no hospital no meio desse caos todo. O problema é que meu transplante certamente vai demorar ainda mais, e isso assusta um pouco”, comenta a bibliotecária. “Enquanto o dia não chega, sigo com a hemodiálise, que faço três vezes por semana, e é o único motivo para eu sair de casa”, acrescenta.
Razões para as quedas
São muitas as razões que explicam a queda no índice de doadores e de transplantes realizados no Brasil neste período de pandemia.
Uma delas, segundo José Huygens Garcia, presidente da ABTO, é a restrição de leitos em alguns Estados e cidades. “À medida que o coronavírus avança, são necessários mais leitos nos hospitais, inclusive na UTI, e isso dificulta a realização dos procedimentos.”
Apesar disso, o médico ressalta que vários centros de transplantes não estão na retaguarda da covid-19 e, portanto, continuam operando.
“A ABTO, inclusive, recomenda manter os transplantes ativos o quanto for possível. Os de fígado, coração e pulmão são vitais. Eles salvam a vida da maioria dos pacientes, que, se não transplantados, sucumbirão em semanas ou meses”, afirma. “No Ceará, por exemplo, já perdemos este ano 12 que estavam na fila aguardando um fígado novo”, acrescenta.
No caso dos renais, Garcia diz que uma suspensão possivelmente aumentaria a lista de espera para diálise, causando dois problemas: “O primeiro é que, se as vagas não forem disponibilizadas, essas pessoas também irão sucumbir, e segundo, mesmo fazendo a diálise, os doentes têm uma chance maior de adquirir doenças virais, por estarem no grupo de risco, terem de se deslocar três vezes na semana, às vezes pegando transporte público lotado, e dividir unidades com aglomerados de pacientes por várias horas”.
Os demais transplantes, como de córnea e pâncreas, o presidente da entidade relata que podem até ser postergados, mas não abolidos completamente.
Outro ponto que tem interferido na realização dos procedimentos, indica Omar Cançado Lopes, coordenador do MG Transplantes, órgão responsável pela política de transplante no Estado de Minas Gerais, é a diminuição dos casos de trauma, como acidentes de trânsito, em função do isolamento social.
“A estimativa na minha região é de queda de 55%, mas acredito que esse índice seja parecido no Brasil todo. O impacto disso no número de transplantes é direto porque essas vítimas são responsáveis por entre 40% e 50% das doações de órgãos e tecidos”, afirma o médico.
A negação familiar também tem sido apontada como um fator importante. “A recomendação do Ministério da Saúde, e apoiada pela ABTO, é de que todo potencial doador seja testado para covid-19 — em caso afirmativo, ele deve ser descartado. Só que o resultado dos exames tem demorado, no mínimo, 12 horas para sair, e muitas famílias não querem esperar esse tempo todo, para não retardar o velório e o funeral”, pontua Garcia.
O médico adianta que a entidade que preside está lutando para que os testes tenham prioridade, justamente para evitar as negativas e as desistências: “Entendemos o drama acarretado pela pandemia atual, mas não podemos deixar a alma do transplante morrer. Milhares de pacientes dependem da doação de órgãos e, consequentemente, dos transplantes para sobreviverem”.
Para Lopes, do MG Transplantes, é fundamental que as pessoas se conscientizem sobre a importância do tema. “Nesse momento, especialmente, precisamos contar com a solidariedade das famílias em autorizar a doação, uma vez que teremos menos possíveis doadores”, avalia, destacando que, em Minas Gerais, a queda no número de procedimentos já chega a 30%.
Leon Alvin, nefrologista do Hospital Leforte Liberdade, de São Paulo, pondera que a suspensão da doação de órgão de doador vivo, quando considerada eletiva (não urgente), é mais um fator que explica a queda.
“Esse tipo de procedimento foi paralisado para evitar expor o doador e, principalmente, o receptor, ao risco do coronavírus”, explica o médico.
O hospital onde ela atua, inclusive, tem sentido bastante os efeitos da pandemia. Lá, para se ter uma ideia, entre janeiro e abril de 2019, foram realizados 72 transplantes (rim, fígado e pâncreas). Este ano, no mesmo período, foram 46.
Recomendações para os pacientes que estão na fila do transplante
Enquanto aguardam o transplante, a principal recomendação para os pacientes que estão na fila, por fazerem parte do grupo de alto risco do coronavírus, é que se mantenham isolados o máximo possível e redobrem os cuidados no dia a dia, até mesmo dentro de casa.
Justamente o que tem feito Letícia, e também o comerciante José Antônio de Oliveira, de 51 anos. Morador de Belo Horizonte, ele está na lista há pouco mais de um mês devido à complicações (câncer no fígado e cirrose hepática) decorrentes da hepatite C.
Segundo associação do setor, a pandemia do novo coronavírus fez o número de doadores cair 9% e de transplante, 20%.
“Só saio para fazer exames e passar por consultas, e sempre uso máscara. Também fico longe de aglomerações e uso álcool em gel o tempo todo. Quando retorno, vou direto tomar banho e trocar de roupa. Eu e minha família também evitamos ficar muito perto, nos abraçar ou beijar. Nossos hábitos mudaram”, relata.
Os hospitais também têm tomado suas precauções. O Leforte Liberdade, por exemplo, está trocando as consultas presenciais pelas online, sempre que possível.
“Aqui, recebemos apenas os pacientes que têm muita necessidade. Para os que precisam fazer exames, temos alguns horários reservados e um setor específico, separado dos demais. Uma vez lá, coletamos o material o mais rápido possível e, depois, passamos os resultados por chamada de vídeo”, informa Alvin.
Ele complementa: “Temos de proteger esses pacientes ao máximo, pois, como fazem parte do grupo de risco da covid-19, as chances de terem as manifestações mais graves da doença são maiores, e as de virem a óbito também”.
Se mesmo com todos os cuidados a pessoa que aguarda a doação de órgão apresentar algum sintoma da contaminação pelo coronavírus — ou mesmo qualquer sinal de piora da doença já existente —, a orientação da ABTO é entrar em contato imediatamente com a equipe responsável pelo transplante ou com o sistema de saúde da cidade.