fonte: O Globo

A Covid-19 afeta sobretudo adultos com alguma doença preexistente e os idosos são a parcela da população em maior risco. Aos 6 anos de idade e até há poucos dias saudável, o menino Noah ignora tudo isso. Internado na UTI pediátrica de Covid-19 do Hospital Universitário Pedro Ernesto (Hupe), da Uerj, ele sequer sabe que contraiu o coronavírus. Quer apenas voltar para casa e torcer pelo Flamengo. Noah faz parte de um grupo pouco lembrado, o das crianças com formas graves de Covid-19, uma doença que nelas é ainda menos compreendida.

De acordo com a OMS, “a infecção por Covid-19 foi registrada em todas as faixas etárias. Ainda assim, estudos indicam que crianças representam apenas cerca de 2% do total de casos em todo o mundo”. No Brasil, não é possível chegar a um número preciso, uma vez que Ministério da Saúde, estado do Rio e município não informam mais a idade dos pacientes e mortos pela doença.

As crianças com Covid severa mergulham na realidade mais dura do coronavírus. Se veem doentes, arrancadas do mundo e cercadas por equipamentos, médicos e enfermeiras em trajes de proteção. Nada ali remete à infância, a despeito dos esforços da equipe de saúde para explicar o inexplicável a pacientes que mal começaram a vida e enfrentam a pior pandemia em um século.

— Crianças não são imunes à Covid-19. Os casos na infância são menos numerosos, mas podem ser extremamente graves e precisamos estar atentos. Em especial agora, quando entramos no período do ano de maior incidência de doenças respiratórias, uma combinação perigosa — alerta Raquel Zeitel, chefe da UTI pediátrica do Pedro Ernesto.

Perigo subestimado

Saudável até há poucos dias e sem doenças preexistentes, Noah foi operado às pressas de uma apendicite em 2 de junho, no Hospital da Posse, em Nova Iguaçu, após sentir fortes dores abdominais.

Ele não apresenta qualquer um dos sintomas mais frequentes da Covid-19, como falta de ar e tosse. Mas os exames de tomografia feitos para a cirurgia do apêndice revelaram que os pulmões do menino estão comprometidos e apresentam o chamado padrão de vidro fosco, característico da Covid-19, que confere à imagem um aspecto embaçado. Um teste de anticorpos confirmou que ele está com o coronavírus.

Como seu quadro continuou grave após a cirurgia, o menino foi transferido para o Pedro Ernesto, que dispõe de uma das poucas UTIs pediátricas de Covid-19 do estado.

— A história de Noah é como a de outras crianças com Covid-19, surpreendente. É um erro muito grave subestimar o vírus . Me preocupo muito quando se fala em reabrir as escolas. Ainda não é o momento — adverte a doutora Raquel.

Com dores fortes, apesar dos anestésicos, Noah não perdia o sorriso e ouvia com atenção o que lhe diziam os médicos em seu primeiro dia de internação. Reclamava apenas de uma injeção mais dolorosa.

— Ele se assustou com os equipamentos. Não contei que estava com Covid-19 para que não ficasse mais nervoso — diz a mãe de Noah, Thamires Soares, de 25 anos.

Leitos lotados

Na UTI pediátrica, um dos pais pode acompanhar a criança. E Thamires não desgruda do leito nem larga a mão do filho. A UTI de seis vagas está lotada.

Uma das crianças é a filha de Delizia de Souza, 38 anos, de Saquarema. Gabriela, de 4 meses, passou a metade de sua vida no leito de UTI. Está no Hupe há dois meses. Diferentemente de Noah, ela sofre de outra doença grave, tem uma cardiopatia congênita. Tanto a Covid-19 quanto a doença cardíaca são difíceis de se perceber no bebê. Se não fossem os equipamentos de UTI à sua volta, ela pareceria apenas dormir tranquila.

Delizia conta que a filha provavelmente foi infectada pelo coronavírus na cirurgia do coração. A Covid-19 agravou uma situação que já era séria.

Na mesma vigília silenciosa de Thamires, Delizia passa o dia em pé ao lado do leito e não larga a minúscula mão da filha. Como tantos milhares de brasileiros afetados pela Covid-19, ela viu a vida mergulhar em incerteza. Não sabe quando poderá voltar a se reunir com os outros quatro irmãos da menina.

Raquel Zeitel mantém o otimismo. Nenhuma das crianças internadas na UTI pediátrica do Hupe morreu. Mas a pediatra se preocupa com a síndrome inflamatória infantil associada à Covid-19, que deixou americanos em alerta e começa a ser encontrada no Brasil. Os sintomas se assemelham à doença de Kawasaki, uma condição rara, mas estudos recentes indicam que seja uma complicação distinta.

Risco maior é de sepse

A UTI do Pedro Ernesto já recebeu cinco crianças com a síndrome, três meninos e duas meninas, de 1 a 14 anos. Todos se recuperaram. O risco maior é o de sepse, uma inflamação generalizada severa e potencialmente letal.

A síndrome causa trombos, febre alta, deixa baço e fígado aumentados, afeta os olhos como uma conjuntivite. A pele se cobre de erupções e aparecem lesões semelhantes à vasculite (inflamação dos vasos sanguíneos).

— São poucos casos, mas começam a aparecer e precisamos estar muito atentos. Algumas crianças têm derrame pericárdico (nas membranas do coração), miocardite (inflamação no coração) e apresentam tantos edemas que ficam visivelmente inflamados. Essa é uma doença que pode afetar o corpo todo e nem todas as crianças que tratamos tinham quadro respiratório.

A doutora Raquel está entre os poucos profissionais de saúde com mais de 60 anos na linha de frente da Covid-19. Aos 63 anos, 34 dos quais no Hupe, ela não esmorece:

— Vi que o foco estava nos adultos e decidi fazer alguma coisa pelas crianças. Claro que dá medo, mas treinei a equipe e fomos em frente. Acho até que posso ter tido Covid-19. Não testei positivo, sou uma incógnita, mas sigo— diz ela.

Ela se preocupa principalmente com as crianças de áreas carentes:

— Vivemos em um país com realidade tão cruel, dividido e desigual, que precisamos encontrar formas de proteger esses brasileirinhos. Como e quando essas crianças vão poder brincar em segurança?

A equipe do GLOBO entrou no Hupe com o equipamento de proteção individual (EPI) necessário para garantir a sua segurança e a de profissionais de saúde e pacientes. Foram usados máscara N95, avental descartável, luvas, óculos, touca e proteção para os pés, vestidos e removidos sob orientação de um médico.