fonte: National Geographic
Era 31 de dezembro de 2019, e a notícia de que a China tratava dezenas de pessoas com sintomas de pneumonia vítimas de uma misteriosa nova doença pareceu longínqua e em nada alterou o cotidiano do médico cirurgião e fotógrafo Ary Bassous, 58 anos, e de sua esposa, a médica clínica Eneida do Nascimento Solé, 62. Eles ainda não imaginavam, mas viviam, entre um plantão e outro, uma das últimas noites normais em muito tempo, quando celebraram a virada para o ano 2020 com beijos e abraços.
“No começo, na China, eu achei que estavam fazendo muito carnaval. Imaginei que seria igual ao H1N1 – é uma coisa grave, vai morrer bastante gente, mas dá para controlar sem pânico, sem desespero. Mas quando o negócio bateu na Itália, todo mundo se deu conta era feio mesmo”, comenta Ary. Formado em medicina, Ary é um entusiasta da fotografia e já ganhou alguns prêmios nacionais e internacionais. “Não segui na profissão porque uma hora tive que escolher, mas minhas férias sempre são ocupadas com viagens para fotografar”, conta. Atualmente, ele trabalha como cirurgião em dois hospitais no Rio de Janeiro – os universitários Antônio Pedro, da Universidade Federal Fluminense (HUAP/UFF) e Clementino Fraga Filho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (HUCFF/UFRJ).
Em 11 de fevereiro, o desafio a ser enfrentado pelos médicos recebeu nome – a Organização Mundial da Saúde (OMS) batizou a doença causada pelo novo coronavírus de covid-19. A partir dali, a escalada ganhou força. Cidades inteiras da Ásia entraram em lockdown e a Europa começou a registrar os primeiros casos. Populações ficaram trancadas em casa enquanto a curva de casos subia. Em pouco tempo, os sistemas de saúde da Itália e da Espanha entraram em colapso. Um mês depois, em 11 de março, com a doença já presente em todos os continentes habitados, a OMS declarou uma pandemia.
Enquanto isso, na emergência do hospital Antônio Pedro, em Niterói (RJ), equipamentos e camas começavam a mudar de lugar. Era necessário criar uma área de isolamento para atender aos casos de covid-19 que inevitavelmente chegariam. “Quando essas mudanças começaram, me dei conta que estávamos vivendo um momento histórico. Decidi ir além do meu trabalho e fotografar”, lembra Ary. Era 18 de março, o mundo marcava 12 mil casos da doença, o Brasil pouco mais de 100, quando o cirurgião começou a registrar as novas condições de trabalho dele e de seus colegas em meio a pandemia.
Máscara, capote, luvas, protetor facial e macacão passaram a ser regra para todos os funcionários do hospital. Eneida, portadora de uma doença pulmonar crônica e parte do grupo de risco por ter mais de 60 anos, começou a trabalhar de casa. Com as visitas proibidas, Endeida ficou responsável por repassar boletins médicos para as famílias dos pacientes por telefone.
Em 24 de março, quando a cidade do Rio de Janeiro registrava cerca de 70 casos de covid-19, Ary se mudou para um apart hotel. “Médico é muito prático. Tem que ser prático, senão não sobrevive. Ele vai e volta de duas emergências, ele mesmo decidiu se afastar”, conta Eneida. “Ficar juntos nessa situação significa que, ou eu não gosto dele, ou ele não gosta de mim. Porque se a gente se gosta, vai entender que não podemos ficar junto.”
A praticidade pode ter salvado a vida de Eneida. Pouco mais de um mês depois, em 4 de maio, Ary começou a sentir os primeiros sinais de covid-19. Os sintomas foram leves e foi possível enfrentar a doença no apart hotel. “Eu tinha um oxímetro e o utilizava de manhã, a tarde e à noite. Eneida me ligava e pedia para mandar fotos”, diz Ary. Ele acredita que foi contaminado no dia do seu aniversário, 29 de abril, quando, apesar de todas as restrições, foi feita uma pequena comemoração no hospital. Nesse dia, Ary, de máscara, ao invés de soprar, apagou a vela com a mão.
Para a secretária da emergência do hospital Antônio Pedro Aline da Silva Santos, o aniversário deste ano também foi diferente. Formada em técnica de enfermagem, ela é testemunha diária da luta dos profissionais de saúde. “Sem ela, aquela emergência não funciona”, destaca o médico Ary. Aline atua como um elo entre a equipe médica interdisciplinar do hospital e os pacientes, sendo responsável por toda a parte burocrática.
O Brasil ultrapassava a marca dos 4 mil óbitos por covid-19, era 25 de abril, e a mãe de Aline queria felicitá-la. “Eu não deixei, ela reclamou que em 44 anos nunca tinha deixado de me dar um abraço, eu respondi que não devia me dar este para poder dar os outros todos”. Aline divide a casa com a mãe, de 65 anos – que tem doença pulmonar e artrite reumatoide – e o filho, de 22. Desde março, eles seguem uma política de distanciamento social interna. “Usamos máscara nas áreas comuns, minhas roupas são separadas para lavar e cada um tem seu prato, seu copo e seu talher. No dia das mães, também ficou cada um no seu canto”, diz ela.
Entre os colegas de Aline afetados pelo covid-19 está o enfermeiro Sílvio Ribeiro dos Santos, 56 anos, que trabalha como auxiliar de enfermagem na emergência há dez anos e identificou os primeiros sintomas no início de abril. Após buscar atendimento e ser mandando de volta para casa, Sílvio continuou passando mal. “Na madrugada do dia 10 de abril, eu coloquei uma roupa e saí sozinho, sem avisar ninguém. Eram cinco da manhã, achei que não iria conseguir chegar no Antônio Pedro. Se eu caísse na rua ninguém ia me ajudar. O oxímetro marcava em 85%, depois disso fui para o CTI”, conta Sílvio. Mesmo sem ter nenhuma comorbidade, Sílvio passou sete dias ligado ao respirador e teria questionado o médico antes de ser intubado: “’Pô, você vai me intubar, cara!?’, isso eles me contaram, eu não lembro de quase nada”.
Sílvio mora com a esposa, duas filhas e um neto. Todos apresentaram sintomas leves da covid-19. Depois de voltar para casa, ele diz que quer ocupar mais tempo com a família e o trompete – um presente do médico Ary Bassous. “Eu gosto de tocar na igreja, mas, se eu disser que sei tocar, o Chet Baker se revira no túmulo”, comenta, rindo, o enfermeiro. Sílvio teve alta no dia 28 de abril, quando o Brasil já ultrapassava 5 mil mortes e os Estados Unidos batiam a marca de 1 milhão de casos. No mundo, foram 76 mil novas ocorrências.
Após sobreviver à covid-19, Sílvio voltou para casa 10 kg mais magro, com olfato e paladar alterados. “Não consigo tomar café, nem comer feijão e arroz por causa do cheiro”, conta. Desde então, só consegue dormir com a luz acesa. “Estou tomando remédio antidepressivo, mas, quando fecho o olho, sinto apneia, falta de ar, acabo deixando a televisão ligada até dormir.” A covid-19 o fez repensar a vida. “Quero administrar melhor o meu tempo, porque o tempo a gente não domina. Antes, eu via muitos programas de debate de futebol. Agora, estou achando tudo isso um saco, quero cuidar mais da minha família”, desabafa Sílvio.
A insônia também foi um problema para a médica clínica Juliana Ribeiro de Carvalho, 41 anos. Logo nas primeiras semanas do atendimento diferenciado no hospital, ela foi designada para trabalhar na área de pacientes não suspeitos de terem o novo coronavírus, mas realocada depois de alguns dias. “Até ali, eu tive muitos pesadelos, mas no primeiro dia que me passaram para atender os pacientes com covid-19 eu me acalmei”, conta Juliana. “A partir dali, percebi que eu sabia o que fazer seguindo os protocolos, e voltei a dormir.”
O mais complicado foi reorganizar a vida junto com o marido, que também é médico. “Tivemos que refazer toda a escala para que sempre tenha um em casa para cuidar do nosso filho, que está sem ir à escola e não pode mais ficar na casa dos avós. A gente quase não se vê, e tem dia que é só passar o bastão – um chega, o outro sai”, diz ela. Certo dia, o menino contou de um pesadelo e os pais perceberam como a pandemia estava afetando psicologicamente a criança. “Meu filho sonhou que estava no carro com a gente na frente, ele achava que estávamos dormindo, mas a gente tinha morrido. Depois disso só vejo as notícias quando ele dorme.”
Em 3 de maio, quando o Brasil ultrapassou a faixa dos 100 mil casos e 7 mil óbitos, Juliana e duas colegas tiveram que carregar um paciente grave que chegou com parada cardíaca devido ao covid-19. “Não tinha maca nem saída de oxigênio. Tentamos achar um canto para tentar fazer alguma coisa”, conta Juliana, emocionada ao se lembrar da gratidão da família do doente pelo esforço da médica. “Eu não sei nem de onde tirei forças, infelizmente o caso já era muito grave e o paciente faleceu.”
Em comum, todos os profissionais de saúde sentem falta do contato físico com familiares, pacientes e colegas. Além do distanciamento social já imposto, o uso do equipamento de proteção dificulta a identificação e a comunicação entre eles. “Você fala e ninguém te ouve. O jeito foi colocar um esparadrapo no macacão com o nome e função”, diz ela.
“É complicado ver as coisas acontecendo tão perto. Saio para trabalhar e não sei se vou voltar para casa. Será que vou apresentar algum sintoma e ficar pelo hospital? Eu acordo todos os dias esperando ouvir a notícia de que criaram uma vacina”, me conta a secretária Aline, que também lamentou, na entrevista, a morte de mais uma colega, de 69 anos, vítima do coronavírus.
Mas nem tudo é tristeza. A esperança se renova quando um paciente vence a doença, como aconteceu com a aposentada Arinda da Silva Azevedo, de 86 anos e carioca nascida “para lá de Macaé”, como ela mesmo diz. Além da idade avançada, Dona Arinda sofre de diabetes, doença renal crônica, pressão alta e já enfrentou um câncer que a obrigou a retirar uma mama há oito anos – doenças que a colocam no temido grupo de risco.
Mas Arinda sobreviveu. Enfrentou o vírus com o ânimo de quem começou cedo a trabalhar em casa de família, criou 18 filhos e só aprendeu a escrever o próprio nome aos 70 anos. “Já perdi a conta de quantos netos, bisnetos e tataranetos”, ri. Ela lembra que um dos médicos lhe dizia já ter perdido uma Arinda, e que não iria perder outra. “Eu cantava de olhos fechados; melhor cantar que chorar, né? Quando eu abria os olhos estavam todos lá na beira da cama me ouvindo”, conta. Dona Arina agora se recupera na casa da filha e diz que “não deseja que ninguém passe pelo que [passou]: muita dor no corpo, era um tal de vira para lá, vira para cá, foi terrível.”
A movimentação narrada pela paciente também está registrada pelas lentes de Ary Bassous, em especial a manobra tecnicamente chamada de pronação, na qual o paciente fica de barriga para baixo. “Pacientes intubados chegam a ficar 16 horas assim, e isso ajuda a ventilar áreas do pulmão”, conta. Para realizá-la, é preciso a perfeita sincronia de movimento de sete pessoas a fim de evitar acidentes como a desconexão do próprio tubo. “É um momento muito delicado, nada pode dar errado”, conta Ary. Muitos comparam o dia a dia do hospital a uma situação de guerra, onde a harmonia entre os profissionais é mais essencial do que nunca. Juliana lembra uma citação atribuída ao escritor Ernest Hemningway, que fora enviada em um grupo de rede social dos colegas: “Quem está nas trincheiras ao teu lado? E isso importa? Mais do que a própria guerra.”
Por enquanto, apesar de curado da doença, Ary voltou ao trabalho fazendo poucas operações. Mesmo que os cirurgiões sempre tenham que estar presentes quando um paciente é intubado, quase todas as cirurgias não urgentes têm sido canceladas para evitar riscos de contaminação por covid-19. Ele e Eneida seguem morando em casas diferentes. “Ninguém sabe que novo mundo é esse. Em relação a epidemiologia, a gente vai saber agora quando a Europa começar a afrouxar o isolamento”, diz ele. “E se tiver uma segunda onda tão forte? Quando vai acabar? Vai ter vacina? Imunidade? Você tem imunidade, mas quanto tempo dura?”
Atualmente, apesar do alerta da OMS de que o país segue em curva ascendente de contágio, o Brasil já realiza a reabertura gradual das atividades não essenciais em algumas regiões. No mundo, já são mais de sete milhões de casos e quase 420 mil mortes. O médico Ary Bassous segue documentando a nova vida dentro os hospitais nos quais trabalha sem saber como será o próximo ano novo.
Ary Bassous é médico e fotógrafo e doou o valor de seu cachê para os hospitais citados na reportagem; conheça mais do seu trabalho no Instagram. Gabi Di Bella é jornalista e fotógrafa colaboradora da National Geographic, veja mais do seu trabalho no Instagram.
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