fonte: Folha de SP

A anulação de um estudo publicado em 22 de maio no periódico científico The Lancet (um dos mais importantes do mundo) acendeu um alerta importante sobre a disseminação dos resultados de pesquisa sobre Covid-19.

A ciência mundial nunca produziu tanto e tão rapidamente: a cada hora, sete novos estudos sobre o novo coronavírus são publicados. O problema é que o número de trabalhos científicos anulados após disseminação também cresceu — o que tem preocupado a comunidade acadêmica.

No caso do The Lancet, cientistas da Suíça e dos EUA tinham concluído que havia risco maior de morte entre pacientes de Covid-19 que tomaram hidroxicloroquina ou cloroquina em comparação aos pacientes que não usaram a droga. A análise teve base em dados de 96 mil pessoas internadas com o novo coronavírus fornecidos pela empresa Surgisphere, a qual também forneceu dados para outra publicação científica, no The New England Journal of Medicine. O trabalho do The Lancet foi corrigido em 29 de maio e, depois, anulado por inconsistência nos números.

Na prática, todo resultado de pesquisa apresentado por cientistas deve passar por revisão de especialistas da mesma área do conhecimento —o que, nos corredores acadêmicos, leva o nome de “avaliação por pares”.

São os “pares” que verificam a metodologia e os resultados expostos no artigo científico, refazem contas a partir dos dados brutos e, muitas vezes, voltam aos autores do estudo com questionamentos. Esse processo pode levar até dois anos —e, ainda assim, não garante a publicação do estudo.

No artigo retratado pelo The Lancet, os pareceristas aparentemente não tiveram nem acesso aos dados brutos da pesquisa (a Surgisphere se negou a transferir a base a uma auditoria externa alegando que isso violaria acordos de confidencialidade com clientes). Como The Lancet e The New England Journal of Medicine não publicam a data de recebimento dos trabalhos acadêmicos, não dá para saber em quantos dias os respectivos estudos científicos com milhares de pacientes foram revisados. Mas é possível fazer essa análise em outros periódicos igualmente importantes.

A revista científica britânica Nature, por exemplo, chegou a publicar neste ano trabalhos sobre Covid-19 duas semanas após ter recebido os manuscritos originais. É o caso de um artigo de cientistas de Wuhan, na China, que associou o aumento dos casos locais de pneumonia ao novo coronavírus com provável origem no consumo de morcegos. O trabalho foi considerado vital para a compreensão da nova doença. Fora submetido em 20 de janeiro, revisado por especialistas em nove dias e veio a público em 3 de fevereiro.

Para se ter uma ideia, um estudo sobre uma estratégia de ajuste molecular para eletrocatalisadores publicado na mesma Nature em novembro do ano passado passou por dez meses de análise. Em média, a Nature levava um ano entre a submissão e a publicação dos estudos acadêmicos devidamente aprovados —a maioria dos artigos ficava pelo caminho.

Há casos ainda mais preocupantes. O periódico científico Journal of Hospital Infection chegou a aprovar um estudo sobre tempo de sobrevivência do novo coronavírus fora do corpo em menos de 24 horas. O trabalho foi submetido e aceito no dia 31 de janeiro. Veio a público em 6 de fevereiro.

No ano passado, o mesmo periódico levava uma média de dois meses entre a submissão e a aprovação de artigos científicos, que traziam resultados de pesquisas sobre temas como, por exemplo, a bactéria gastrointestinal E-coli.

Os trabalhos do Journal of Hospital Infection têm pouco impacto acadêmico: são mencionados, em média, quatro vezes em trabalhos científicos posteriores (para se ter uma ideia, cada artigo do The Lancet aparece em 59 estudos científicos futuros). Mas o impacto na mídia é grande: a informação de que o novo coronavírus sobrevive de quatro e cinco dias fora do corpo em materiais como aço, alumínio e plástico foi amplamente disseminada pela imprensa.

A corrida da ciência para publicação dos resultados já aumentou a quantidade de estudos retratados pelo mundo. Em 2015, 565 trabalhos publicados foram anulados pelos periódicos acadêmicos por causa de erros graves como incongruência de dados ou plágio. Neste ano, com pouco mais de um terço dos trabalhos publicados em 2015, a taxa de retratações já chega a 624 artigos científicos —quatro deles com pesquisadores do Brasil.

Os trabalhos retratados continuam disponíveis nas publicações acadêmicas, mas recebem uma grande faixa vermelha com a informação de que foram anulados. São acompanhados de texto do editor da publicação científica, que explica o motivo da retratação dos resultados.

O problema é que muitas vezes esse processo acontece depois de ampla divulgação. Em 2010, o mesmo periódico The Lancet retratou um estudo publicado doze anos antes que havia associado o autismo infantil à vacina tríplice viral (sarampo, rubéola e caxumba). Apesar da anulação, o trabalho é mencionado até hoje em movimento anti-vacina em todo o mundo.

A ciência, claro, está sob pressão para dar respostas sobre uma doença que, no Brasil, já mata uma pessoa por minuto. O processo científico de investigação, análise e disseminação de resultados, no entanto, tem um ritmo mínimo que deve ser respeitado, a despeito da ansiedade. Especialmente em casos complexos, evidências mais precisas valem mais do que respostas rápidas.