fonte: O Globo
As primeiras imagens do Sars-CoV-2 em ação dentro de células infectadas obtidas com microscopia eletrônica revelaram novas informações sobre os mecanismos usados pelo vírus para se espalhar pelo corpo e causar a Covid-19. O estudo, pioneiro no mundo, reuniu pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Universidade de São Paulo (USP) e indicou que ele usa mecanismos até agora desconhecidos em coronavírus para atingir diferentes órgãos.
Pela primeira vez também foi possível acompanhar diferentes fases da ação do coronavírus, flagrado duas e 48 horas após invadir uma célula epitelial. Além de abrir caminho para entender melhor como a Covid-19 se agrava, a pesquisa permite avançar na pesquisa de alvos farmacológicos, drogas que realmente destruam o vírus.
A microscopia eletrônica de varredura possibilitou mergulhar no campo de batalha entre o Sars-Cov-2 e as células invadidas. De tão pequeno, ele é invisível para os melhores microscópios óticos.
Em média, os cientistas ampliaram as imagens mais de 80 mil vezes, uma delas chegou a 229 mil amplificações; mais do que isso, perde-se a resolução, explica o principal autor do trabalho Lucio Ayres Caldas, do Laboratório de Ultraestrutura Celular Hertha Meyer e do Núcleo Multidisciplinar de Pesquisas em Biologia, ambos da UFRJ.
O coronavírus é o maior dos vírus de RNA, mas apenas médio para um vírus. Ainda assim, mede entre 85 a 100 nanômetros, pequeno demais para ser observado por meios óticos. Mas, para compreender seus mecanismos de ação e combater a Covid-19, é preciso ver o que acontece nessa escala invisível. A microscopia eletrônica de varredura oferece imagens como as vistas numa transmissão de TV.
No trabalho submetido à revista Scientific Reports, da Nature, os cientistas relatam a descoberta de que o Sars-Cov-2 não precisa esperar a células invadidas se romperem para se espalhar pelo corpo. Ele também usar outros meios.
– Encontramos indícios de que as células infectadas fazem uma espécie de projeção, nanotubos, aderem umas às outras e o coronavírus se propaga assim também – explica Wanderley de Souza, do mesmo laboratório de Caldas, também autor do estudo e um dos decanos da ciência brasileira.
O Sars-CoV-2 emprega um mecanismo conhecido como viral surfing. Esse “surfe viral” dá duas vantagens ao Sars-CoV-2. Primeiro, permite que se espalhe com eficiência, aproveitando o embalo do corpo, como um surfista numa onda. Quem avança é a onda, o contato entre as células, e ele vai junto, como se surfasse. Além disso, observa Caldas, faz com que, ao ficar entre uma célula e outra, ele se esconda melhor do sistema imunológico.
Esse mecanismo é conhecido no vírus do herpes e se sabe que pode acontecer com o HIV, mas era inédito em coronavírus.
– Esse vírus e sua doença têm surpreendido a todos. Estudamos sua interação com as células justamente para encontrar formas para derrotá-lo – frisa Caldas.
O trabalho é parte de um projeto maior apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) e emprega alguns dos equipamentos mais modernos do Rio de Janeiro, como os microscópios eletrônicos de varredura do Centro Nacional de Biologia Estrutural e Bioimagem (Cenabio), na UFRJ. Também é imprescindivel o laboratório de segurança de nível 3 (NB3) do Laboratório de Virologia Molecular da UFRJ, coorderdenado por Amílcar Tanuri, um dos autores do estudo.
Os cientistas começam agora a examinar células da retina de pacientes com Covid-19 e planejam investigar a ação do coronavírus em órgãos como testículos, rins, pâncreas, fígado e cérebro. Um dos principais obstáculos ao avanço da pesquisa, destaca Souza, é a falta de laboratórios de nível de segurança 3, imprescindíveis para manipular o altamente contagioso Sars-CoV-2. O NB3 da UFRJ está sobrecarregado com trabalhos de diagnóstico de Covid-19 e uma série de outros estudos sobre a coronavírus.
Se sabe que o coronavírus ataca os órgãos pelas lesões encontradas neles. Mas não se sabe se isso é decorrente do ataque direto do vírus, da reação descontrolada do sistema imunológico em resposta a ele ou se a ambos. Cientistas como Souza e Caldas, consideram essa última hipótese a mais provável. Porém, é desconhecido como o Sars-Cov-2 ataca células de órgãos diferentes. A pesquisa do grupo deles pretende elucidar esse mistério.