fonte: O Globo

Nos Estados Unidos, não há um sistema único de saúde — isto é, uma rede articulada com um propósito comum —, mas sim uma série de programas estaduais independentes pouco conectados entre si.  Cada uma das 50 unidades federativas tem o próprio sistema; dentro deles, o principal operador é o mercado, que atua com pouca regulação.

Ao longo da pandemia, desvantagens desse modelo ficaram nítidas. A falta de um órgão central fez com que a resposta de departamentos estaduais e locais de saúde variasse. Alguns tinham recursos e se coordenaram com vizinhos, enquanto outros foram titubeantes.

Em março e abril, governadores e prefeitos concorriam entre si por equipamentos.  Em plena emergência, a crise econômica deixava muitos americanos sem plano de saúde. A economia seria retomada em vários lugares em maio. No mês seguinte, recordes de casos diários foram várias vezes batidos, o que continua a ocorrer.

A falta de ação política foi crucial para o cenário desolador atual. O presidente do país, Donald Trump, e alguns governadores não agiram com antecipação nem liderança. A despeito dessas falhas, particularidades do sistema americano de saúde tornaram o país especialmente vulnerável à catástrofe.

— Sem dúvidas, o principal motivo para haver mais de 140 mil americanos mortos foi a inação do presidente e de muitos governadores. O principal problema não é nosso sistema de saúde, mas nossa falta de liderança política.  — afirmou Jonathan Oberlander, professor de Saúde Pública da Universidade da Carolina do Norte em Chapell Hill. — Mas algumas características dos EUA, como o federalismo, contribuíram para o problema, assim como o fato de que muitos americanos não têm uma boa cobertura. Tentamos tapar os buracos do sistema, e os resultados foram variados. Nos saímos melhor quanto à testagem do que quanto a tratamentos.

Problemas da fragmentação

Na estrutura federalista da saúde nos EUA, a maior parte da coordenação e do financiamento contra a pandemia cabe aos estados. Foram eles que pagaram pela maioria da resposta, incluindo a compra de equipamentos de proteção e respiradores, o estabelecimento de espaços onde indivíduos infectados fariam quarentena com segurança, os pagamentos a hospitais e o rastreamento de casos.

O governo federal tinha autoridade restrita para centralizar uma resposta, podendo ajudar com recursos e coordenação. A resposta de Trump, no entanto, foi desigual, variando de acordo com suas alianças políticas. Deste modo, a falta de unidade na resposta deixou os estados em apuros para pagar por uma emergência que superava seus orçamentos.

— Temos 50 diferentes sistemas de saúde estaduais, e há diferenças também entre nossos sistemas públicos de saúde e nosso sistema de cuidados médicos, que são em geral separados um do outro. Este é um país grande que, na melhor das hipóteses, contará com orientação e coordenação fortes do governo federal  — afirmou Erin Schneider, vice-presidente de Políticas e Pesquisa do Commonwealth Fund. — Mas isto não está acontece agora. O governo federal tomou uma decisão explícita de deixar os estados lidarem com o problema.

A fragmentação também prejudica a vigilância sanitária, aponta Rifat Atun, professor de Sistemas de Saúde da Universidade Harvard. Os Centros de Controle de Doenças (CDC) têm autoridade limitada, e falta uma agência central para coletar e monitorar dados de nacionais e externos, capaz detectar surtos emergentes e coordenar a prevenção.

— Não há um centro de controle centralizado, o que torna muito difícil pensar em uma resposta integrada. No Brasil, por exemplo, há um sistema dividido em um nível federal, estadual, e municipal, mas eles são integrados. Nos EUA não há isso, o que torna muito difícil fazer as políticas descerem do topo à base. O sistema não funciona como um sistema, e isto era o mais crucial — afirmou Atun. — Se um estado está agindo bem, mas outro não, e há pessoas atravessando a fronteira, então não há nada que possa ser feito.

Atun aponta ainda que “a função de saúde pública também é desintegrada do atendimento, e isso dificulta a aplicação de políticas”. Ao contrário de todos os outros países desenvolvidos do mundo, os Estados Unidos não oferecem cobertura universal a seus cidadãos — isto é, não garantem serviços de saúde de qualidade a toda a sua população.

Há dois grandes programas públicos, o Medicare e o Medicaid, nos quais o governo paga o atendimento, respectivamente, de pessoas idosas e o de famílias pobres em hospitais privados. De resto, as pessoas devem buscar seus planos no mercado, e o acesso em geral é vinculado ao trabalho.

Durante a pandemia, o desemprego levou 5,4 milhões de pessoas a perderem os seus planos de saúde, de acordo com um estudo lançado na semana passada. Elas se somaram a, segundo dados do Censo de 2018, cerca de 27 milhões de pessoas que não tinham planos, e por volta de outros 60 milhões que tinham planos ruins, sendo os chamados “subsegurados”.

Contas astronônimas

Parte das pessoas também pode ter tido receio para buscar atendimento, algo reforçado pela notória falta de transparência do setor, onde contas astronômicas são comuns. Embora, em março, o Congresso tenha aprovado uma legislação garantindo testes a quem precisasse, continua a não haver uma lei abrangente para atendimento.

Para os segurados, houve medidas para que a Covid-19 fosse incluída nas doenças cobertas pela maioria dos planos, mas há programas com franquias, que podem chegar a quantias  consideráveis. O governo federal liberou um fundo de alívio para aqueles que não têm seguro, mas a cobertura depende da disponibilidade de fundos. Ademais, segundo Atun, os provedores de serviços podem escolher se cobrarão dos pacientes ou recorrerão ao fundo.

O atendimento primário também não é forte no país, que depende muito de hospitais regionais. Somando isto ao medo dos custos, muitos pacientes demoram a buscar atendimento.

— Nosso atendimento primário é fraco, as pessoas não têm acesso fácil a ele. As pessoas não usam os serviços, ou demoram para recorrer a eles. Isto é um problema, porque então a condição se tornou mais séria. Os riscos aumentam, mas também os custos — afirmou Atun.

Oberlander, por sua vez, observa que não é claro o que é um tratamento para a Covid-19, o que também intimida na hora de buscar ajuda:

— Há um debate sobre onde começa e acaba um tratamento para a Covid-19. Se você ficar na UTI por alguns dias, o quadro pode se tornar crônico, e podem surgir outros problemas que não se poderá definir com clareza se são ou não relacionados à Covid-19. Há pessoas que estão tendo grandes quantias cobradas por causa dessas lacunas.

Vantagem da inovação

A vantagem do sistema americano, segundo os pesquisadores, é a tecnologia de ponta. O país é pródigo em termos de inovação, ciência, diagnóstico, remédio e vacinas.

Em ano eleitoral, ansioso por dizer que resolveu o problema, Trump fez esforços bilionários para se aproveitar dessa vantagem e acelerar as pesquisas, incluindo a Operação Warp Speed (velocidade de Dobra), que reúne companhias farmacêuticas, agências governamentais e militares, e busca apressar o prazo de conclusão de uma vacina para oito meses.

— Nossa força é que temos uma indústria biomédica e de inovação com a capacidade de desenvolver novos tratamentos, vacinas e testes. Tendemos a apostar nisso como estratégia para muitos problemas, acreditando que centros de inovação biomédica e universidades, alinhadas com investidores, desenvolverão soluções — afirmou Schneider. — Mas não sabemos se alguma dessas coisas vai funcionar, nem quando. Enquanto isso, temos investido muito em pesquisas muito arriscadas.

Os mais vulneráveis

Alguns dos efeitos mais negativos do sistema, por sua vez, podem ser vistos  nas populações mais afetadas pela pandemia:de acordo com uma pesquisa do New York Times liberada nesta semana,  latinos e negros têm três vezes mais chances de serem infectadas pelo novo coronavírus que seus vizinhos brancos e duas vezes mais chances de morrer. Em faixas etárias mais avançadas, a desigualdade é ainda maior.

Julia Lynch, cientista política da Universidade da Pensilvânia especializada em política e saúde, diz que, embora “a falta de políticas coordenadas certamente tenha feito a situação pior”, os dados deixam claro também que o principal problema da saúde nos Estados Unidos são “as desigualdades sociais subjacentes”.

A maior parte da população dos Estados Unidos, segundo ela, “está em más condições de saúde”, e doenças que agravam a Covid-19 como diabetes, obesidade e tuberculose, são comuns. Caso houvesse cobertura universal, ela afirma, estas condições poderiam ser um pouco atenuadas. Ainda assim, em sua análise, a principal deficiência americana em sua resposta foi a fraqueza de sua rede de proteção social.

— Nós carecemos de programas de proteção social básica que teriam permitido às pessoas ficarem em casa quando o vírus começou a se disseminar. A ausência de programas para aqueles muito vulneráveis significou que ou eles iriam para o trabalho muitos doentes, ou não teriam dinheiro, e levou a pressões para a retomada da economia antes de estarmos prontos — ela afirmou. — A falta de políticas coordenadas certamente fez a situação pior. Mas, mesmo se tivéssemos acesso à cobertura universal, isso não quer dizer que teríamos nos saído bem.