fonte: Folha de SP
Governos estaduais, prefeituras e Defensorias Públicas têm travado uma disputa judicial com União e conselhos de medicina na tentativa de liberar a contratação de médicos formados no exterior durante a epidemia do novo coronavírus.
As primeiras decisões sobre o tema começaram em maio. Desde então, a disputa continua e ganhou reforço de novas ações.
Para atuar no país, médicos formados no exterior precisam passar por um processo de revalidação do diploma, o que geralmente ocorre por meio de uma prova chamada de Revalida.
Governos têm alegado atraso na realização do exame nos últimos dois anos e dificuldade em contratar profissionais —daí a tentativa de realizar decretos e editais para esses contratos. O impasse foi parar na Justiça.
Já os conselhos tentam barrar a medida sem que haja revalidação do diploma.
A Folha localizou ao menos sete ações recentes sobre o tema, a maioria envolvendo estados e municípios do Norte e Nordeste, como Maranhão, Acre, Roraima e cidades do Amapá e Sergipe.
Destas, cinco têm como status mais recente a derrubada de pedidos ou iniciativas que abriam espaço para contratação. A alegação é que a medida fere Lei de Diretrizes e Bases da Educação, a qual determina revalidação do diploma.
Outras duas tiveram cenário oposto, sob o argumento de garantir a assistência de forma temporária.
Em geral, as ações judiciais vêm de conselhos de medicina, mas também de governos, defensoria e Ministério Público.
O presidente do CFM (Conselho Federal de Medicina), Mauro Ribeiro, diz que vê um movimento político para burlar as normas atuais que exigem a revalidação do diploma durante a pandemia.
“A medicina sofre um ataque meramente político para trazer, à revelia da lei, profissionais supostamente médicos sem que comprovem conhecimento mínimo”, diz. “É um absurdo, um casuísmo no meio dessa tragédia que estamos vivendo. Não falamos isso como uma medida corporativa, mas para defender o bom atendimento à saúde da população brasileira.”
Em meio ao embate, o conselho divulgou na última semana os resultados de uma pesquisa encomendada ao Datafolha sobre a percepção da população ao Revalida.
O levantamento ouviu 1.511 em todas as regiões. Desses, 91% disseram apoiar a necessidade de revalidação do diploma para que médicos formados no exterior atuem no Brasil.
Estados e prefeituras, no entanto, alegam que a pandemia tem trazido uma situação excepcional, com aumento na demanda por profissionais. Dizem ainda que a contratação levaria em conta médicos que já atuaram no programa Mais Médicos, por exemplo.
A queda de braço, porém, parece estar longe do fim. Em Aracaju, uma decisão inicial, a pedido do Ministério Público, chegou a determinar que o Conselho Regional de Medicina concedesse registro temporário a médicos sem diploma revalidado. O grupo atuaria no hospital de campanha da cidade.
A medida, porém, foi revista no fim da última semana por um desembargador do Tribunal Regional Federal da 5a região. A nova decisão veio após recurso do Conselho Regional de Medicina do Sergipe, que apontava riscos na atuação dos médicos.
Questionada, a secretaria municipal de saúde diz que a medida levará ao fechamento de leitos recém-abertos com a contratação de médicos formados no exterior.
“Com a decisão favorável ao conselho, a prefeitura terá de reduzir o quantitativo de leitos disponíveis atualmente no hospital de campanha de 102 para 60, deixando de atender 42 pacientes que necessitam de leitos de estabilização no tratamento contra a covid-19”, diz.
Em nota, o conselho nega dificuldade na contratação e aponta falta de resposta da prefeitura a médicos que poderiam ser contratados.
Já a prefeitura diz que, de uma lista com mais de cem nomes aptos a trabalhar enviada pelo conselho, apenas sete profissionais demonstraram interesse.
Embate semelhante ocorre em outros estados. No fim de junho, a Justiça Federal reverteu liminar que possibilitava ao governo do Acre realizar contratação de médicos formados no exterior e sem Revalida. O estado diz que analisa como recorrer da decisão.
Já estados como Maranhão e Roraima obtiveram decisões favoráveis à contratação temporária sem Revalida, desde que com prioridade nas vagas a médicos formados no país.
Para o defensor público regional em direitos humanos em São Paulo, João Paulo Dorini, a situação evidencia uma dificuldade antiga em levar médicos a regiões mais carentes.
O caso levou a DPU (Defensoria Pública da União) a ajuizar, no fim de abril, uma ação para que CFM e União não impedissem governos de contratar médicos formados no exterior para atuação temporária durante a pandemia.
O órgão diz ter feito um levantamento à época que apontava 15 mil médicos ainda sem diploma revalidado —a maioria era de brasileiros formados em faculdades de países próximos, como Paraguai, Bolívia e Argentina, mas também refugiados e outros imigrantes.
O pedido, porém, foi negado. Na decisão, o juiz que analisou o caso afirmou que a situação de pandemia não justifica “permitir a contratação de profissionais médicos que não atendam a requisitos legais”.
Agora, o órgão analisa novas formas de recorrer. Segundo Dorini, a decisão não impede novas tentativas de contratação pelos estados e ações sobre o tema.
O argumento é que o atraso na realização do Revalida impede a tentativa de revalidação do diploma pelos médicos, que poderiam ser colocados de forma temporária em funções de apoio —desde que tenham habilitação para atuar no país de formação, afirma.
Para Mauro Ribeiro, do CFM, porém, não há garantia de que os médicos seriam aprovados no Revalid. Nos últimos anos, a média de aprovação foi de 19,87%.
Ele chama de falácia a dificuldade na contratação, mas reconhece problemas na distribuição de médicos.
“Medicina é uma profissão como todas as outras. Onde tem mercado tem médicos, e onde não tem mercado há dificuldade em alocá-los”, diz ele, que defende mecanismos de carreira de Estado para fixar profissionais nestes locais.
Questionado, o Inep, instituto responsável pelo Revalida, afirma que está organizando cronograma do novo exame.
O instituto atribui o atraso a uma necessidade de reaplicar a prova a participantes da edição ocorrida em 2017, o que impediu que o exame fosse realizado nos dois últimos anos.