fonte: Agora
Angústia, cansaço, desespero, sensação de mãos atadas, estresse. Depois de um ano no foco da pandemia de Covid-19, profissionais da saúde se veem tentando juntar forças para lutar contra o período mais grave da doença no país, revivendo os sentimentos que nunca foram embora.
“Não dá para aguentar ver gente morrendo a toda hora, ver pessoas da sua idade com um tubo na boca para tentar respirar”, desabafa Marli Rodrigues, 44, enfermeira da UTI do Iamspe (Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual de São Paulo). Enquanto ela faz o relato da rotina, precisa de força também para segurar a emoção.
Em duas horas de plantão, na manhã da última quarta-feira (10), Marli já tinha visto duas mortes pela doença. Uma terceira vaga foi aberta no setor pela alta de um paciente. Mas não significaria um alívio no trabalho: já havia outros três aguardando internação na UTI. “A gente não tem mais folga de leito, estamos o tempo todo batendo 100%.”
O efeito disso, ela diz, são as equipes cada vez mais sobrecarregadas e com ânimos à flor da pele. Às vezes, o estresse fala mais alto. “As pessoas começam a se alterar umas com as outras por causa do cansaço. Todo dia tem um conflito para ser resolvido.”
Conforme a pandemia se agrava, os relatos dos plantões vão se tornando mais dramáticos. Na quinta-feira (4), no Hospital Universitário da USP, foi necessário reter macas de ambulâncias. Sem elas, não seria possível acomodar os pacientes, diz Gerson Salvador, diretor do Simesp (Sindicato dos Médicos de São Paulo) e médico da unidade. “A gente tem sempre mais paciente que o que consegue atender.”
Os casos têm ficado cada vez mais graves e numerosos. E o efeito disso é sentido em todo o sistema de saúde. A dificuldade para as transferências tem feito se repetir situações em que as ambulâncias chegam a hospitais com pacientes graves, mas não encontram vagas, diz um condutor do Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) que pediu para não ter o nome publicado.
“As famílias vêm pedir pelo amor de Deus para socorrermos uma pessoa. Mas você vai fazer o quê? Nós fazemos o nosso melhor, colocamos oxigênio, ligamos a sirene e saímos. Mas, depois, fazemos o quê?”
Na UPA Oropó, em Mogi das Cruzes, a lotação tem sido constante, segundo o enfermeiro Rodrigo Romão, 39, diretor do Sindicato dos Enfermeiros que atua na unidade. Por lá, os leitos de estabilização –onde os pacientes não deveriam ficar por mais de 24 horas– estão sempre ocupados, com as mesmas pessoas por dias. “A gente sabe que só vai surgir vaga na UTI quando um que está internado morrer.”
Na quarta (9), Romão viu mais um paciente morrer na unidade sem conseguir transferência. O homem, de 84 anos, passou cinco dias internado depois de chegar à unidade com falta de ar. Naquele momento, ele conversava e parecia bem, diz o enfermeiro, mas teve uma piora drástica e, uma hora depois, precisou ser intubado.
A família tentava se apegar ao fato de que o idoso, dias antes, havia recebido a primeira dose da vacina contra a Covid-19 –mas, sem o reforço, o imunizante ainda não tem o efeito completo. A segunda dose estava agendada exatamente para o dia 9, mas o homem não teve tempo de recebê-la. “Aquela família está bem arrasada por conta dessa doença.”
Para o pediatra Walter Muller, 62, o mais difícil tem sido perder profissionais da saúde que, além de companheiros de trabalho, são amigos. A pressão emocional, segundo ele, é maior a cada dia. Em um só fim de semana, ele perdeu dois membros da sua equipe.
“No sábado morreu um, e, no domingo, o outro. E eu tinha que ir no domingo à noite para o plantão. Imagina, depois perder dois companheiros de equipe de muitos anos, como estava a minha situação emocional, e ainda ter que ir trabalhar. Era o dever me chamando.”
Trabalhando “na reserva” porque o cansaço extremo já ficou para trás, diz o médico intensivista Caio Jaoude, do Iamspe. Aos 36, ele já precisa lidar com a ansiedade, insônia e a pressão alta, tudo fruto de um ano inteiro em ritmo intenso.
A rotina extenuante acaba afetando também os momentos de pausa durante o plantão, cada vez mais raros. “No descanso, a gente tenta ser o mais tranquilo possível, mais agradável. Mas em muitos momentos tem um desentendimento, alguém que tem alguma pressão maior fica mais chateado e irritado.”
A médica intensivista Rebeca Klarosk, 30, também do Iamspe, já conta dois meses sem um fim de semana de folga. Ela tem trabalhado cerca de três vezes mais que a carga normal. “São plantões extra para ninguém ficar sobrecarregado, mas todo mundo já está sobrecarregado.”
Na segunda-feira (8), Rebeca diz que viveu mais um dos momentos que marcam a rotina de um médico: um paciente de apenas 44 anos e sem problemas de saúde que teve uma piora rápida, com febre e queda de pressão, até chegar a uma parada cardiorrespiratória.
A equipe passou uma hora e meia se revezando para tentar reanimá-lo, sem sucesso. “Além de perder um paciente tão jovem, dar a notícia para a esposa foi muito difícil. Eu sei que a gente precisa ser forte, mas eu não aguentei e chorei junto com ela.”
Depois de um ano, reconhecimento foi embora, dizem profissionais
“Nós não somos mais heróis. Estamos todos com as capas rasgadas”. É assim que a enfermeira Marli Rodrigues, 44, resume o trabalho para curar pessoas da Covid-19 depois de um ano que a batalha começou. A falta de experiência com a doença, no início, deu lugar ao cansaço das equipes de assistência.
Mesmo durante o pior momento da pandemia, os repetidos relatos de pessoas se aglomerando mostram uma parcela da população não tem cumprido a sua parte. Por outro lado, quem combate a pandemia não pode deixar de fazer a sua.
O que parece, segundo o enfermeiro Rodrigo Romão, 39, é que aquele reconhecimento inicial, quando os profissionais da saúde eram vistos como heróis, passou. “As pessoas perderam o medo e tocaram a vida normalmente.”
Desse jeito, diz Marli, é difícil manter as forças para seguir na missão. “Se eu pudesse falar o que eu quero fazer, eu sentava e chorava, de tanto cansaço, e a gente vê que ninguém se importa. O mundo parece que não está se importando com o nosso trabalho.”
Depois de a gente ver tudo o que aconteceu em 2020 voltando, a impressão que fica é de que população e governos não dão atenção à real gravidade do que está acontecendo, diz um condutor de ambulância do Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) que pediu para não ter o nome publicado.
“Ninguém está preocupado com o trabalhador. Parece que acham que a gente é máquina, que a gente não sente dor, que não tem família.” Para o condutor do Samu, falta consciência. “Só dão valor ao nosso trabalho quando têm um familiar entre a vida e a morte. Só aí passam a reconhecer que a pandemia é grave. Fora isso, não estão nem aí. E a gente sai todo dia para trabalhar pedindo a Deus para ter saúde para ajudar a quem precisa.”
Pico atual é pior que o vivido em 2020
“O momento é muito mais grave, mas as pessoas estão se cuidando menos”, afirma Gerson Salvador, diretor do Simesp (Sindicato dos Médicos de São Paulo) e médico do Hospital Universitário da USP. Com isso, os números de casos e mortes pela Covid-19 não param de crescer.
Recordes atrás de recordes, a situação parece não ter um fim próximo. O medo da doença já nem afeta tanto, diz o pediatra Walter Muller, 62. O cenário agora é de desânimo por ver que não há como fugir da piora que se desenrola. “Esse ano eu já considero como perdido.” E isso porque a população não dá sinais de que vai colaborar com as medidas básicas para a prevenção da Covid-19: distanciamento, higiene das mãos e uso de máscaras.
Apesar do aprendizado acumulado ao longo do último ano, a Covid-19 parece continuar descobrindo novas formas de surpreender as equipes de assistência. Na onda atual, chegam pacientes mais jovens e mais graves. “Estamos reaprendendo muita coisa”, diz a intensivista Rebeca Klarosk, 30.
Um novo padrão, ela diz, é a necessidade de reintubar pacientes depois que eles melhoram. “A gente tira o tubo e, dali a dois dias, começa tudo de novo. Por mais que a gente estude, a gente ainda não conhece totalmente o coronavírus, ele ainda é uma incógnita. Isso nos deixa muito assustados.”
Recuperações dão gás para seguir na missão
No meio de tantos dramas, focar nos casos positivos é uma forma para ter forças para seguir na linha de frente, diz o médico intensivista Caio Jaoude, 36. Um dos casos que mais lhe chamou a atenção recentemente foi o de um homem internado na UTI com a mesma idade que ele.
Depois de passar cinco dias intubado, o paciente teve melhora e saiu da ventilação mecânica. Poucos dias depois, quando a equipe achava que a alta estava próxima, ele piorou novamente e passou mais 25 dias com a intubação. “Foi um período com diversas intercorrências, a gente [a equipe] ficou arrasado, fazendo tudo o que era necessário.”
Ao todo, foram 70 dias no tratamento intensivo, em que precisou inclusive de hemodiálise. “Na Covid-19, não existe controle. Só podemos dizer que a doença está controlada quando damos alta.”
“Lembra do fulano”, é a palavra de guerra para que a equipe mantenha o foco na luta, diz a enfermeira Marli Rodrigues, 44. Um deles foi um paciente de 42 anos que chegou a um estágio em que parecia não haver mais esperanças. Surpreendentemente, ele começou a melhorar.
Depois da alta, a família mandou vídeos dele indo embora no grupo pelo qual trocavam mensagens –um dos indícios dos vínculos formados. “É isso o que nos motiva.”