fonte: Folha de SP
O impacto do primeiro ano de pandemia no SUS já mostra um rastro de desassistência em todos os níveis de cuidado, que soma a gargalos anteriores. A atenção primária, porta de entrada no SUS, registrou queda de 49% dos atendimentos.
As consultas com especialistas tiveram redução de 25%, em média, e as internações, de 16% (exceto as por doenças infectocontagiosas), segundo dados do Datasus. A comparação leva em conta a média de procedimentos realizados de 2017 a 2019.
Nos primeiros meses da pandemia, em abril e maio, a queda chegou a 30% nas internações e a 64% nas consultas na comparação com o mesmo período dos anos anteriores.
O SUS é responsável por 65% das internações do país. Na última década, a quantidade de internações se manteve relativamente estável, com variações inferiores a 3% para mais ou para menos em relação ao ano anterior.
A queda de internações em 2020 é atribuída pelos especialistas a dois fatores: restrições de acesso durante a pandemia (serviços que interromperam ou reduziram muito o atendimento eletivo de outras doenças não Covid) e o fato de que muitas pessoas adiaram a procura por medo do coronavírus.
Nas doenças cardiovasculares, uma das principais causas de morte no Brasil, a redução de hospitalizações foi de 16%. Ao mesmo tempo há indícios de que houve aumento dos óbitos em casa.
Segundo levantamento divulgado ano passado pela Sociedade Brasileira de Cardiologia, nos três primeiros meses da pandemia, de março a maio, houve um aumento de 32% de mortes cardiovasculares em casa.
Em 21 de abril do ano passado, Rogério da Silva Filho, 44, sentiu-se mal e caiu no banheiro de seu apartamento, em São Paulo. A mulher, Ana Cristina, tentou socorrê-lo, mas ele morreu antes de o Samu chegar. A família conta que demorou um total de oito horas até que o corpo fosse retirado de casa.
Silva tinha pressão alta, mas a mulher diz que a doença estava controlada. Dias antes, ele havia recebido diagnóstico de Covid-19, mas estava bem, com sintomas gripas leves. Vários estudos têm associado mortes cardíacas à Covid-19 pelos danos causados ao funcionamento do coração.
Para o cardiologista Álvaro Avezum, secretário da Socesp (Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo), muitas pessoas, mesmo com sintomas, ficaram com receio de buscar atendimento médico devido à pandemia.
“O infarto agudo do miocárdio e o AVC [acidente vascular cerebral] são dependentes de tempo. Se a atuação ocorre no tempo certo, reduz-se significativamente mortalidade e incapacitação”, explica.
Segundo ele, outros países como Espanha, Itália e o estado da Califórnia (EUA) registraram um fenômeno parecido com o do Brasil, com aumento de mortes em casa e redução de internações cardiovasculares. “Não houve nenhum programa de prevenção que justificasse essa queda. As pessoas procuraram menos os serviços de saúde.”
Quanto às internações por câncer, embora elas tenham sofrido redução inferior às das outras especialidades (5%), a área inspira preocupação por outra razão: a falta de diagnósticos devido a uma queda brutal de exames e biópsias.
O relatório Radar do Câncer, do Instituto Oncoguia, aponta que o volume de biópsias realizadas no país teve queda de 39% (de 737.804 em 2019 para 449.275 em 2020).
“Isso incomoda muito. São pessoas que já têm alguma coisa, que precisariam verificar essa suspeita e não fizeram a biópsia. Onde elas estão? Se você não faz o diagnóstico precoce, a doença avança”, diz a psicóloga Luciana Holtz, presidente do Oncoguia.
A queda de 23% das hospitalizações por causas externas (como quedas e acidentes) é atribuída às medidas de distanciamento social que resultaram em menor em circulação de veículos e pessoas nas ruas e menos acidentes. Historicamente, essa causa tem ocupado a segunda posição no ranking das internações, só atrás de partos.
Segundo o ortopedista Jorge dos Santos Silva, chefe do corpo clínico do IOT ( Instituto de Ortopedia e Traumatologia) do Hospital das Clínicas da USP, mais de 90% das internações por causas externas são de acidentes de trânsito e quedas. Também entram nessa classificação casos de lesões com armas e envenenamento.
“As maiores reduções aparecem nas quedas, nos atropelamentos de pedestres e nos acidentes com motociclistas. Isso indica que, em algum momento, as pessoas ficaram mais em casa”, afirma.
Em São Paulo, o relatório anual de sinistros de trânsito da CET (Companhia de Engenharia de Tráfego) mostra que os acidentes caíram de 13.966, em 2019, para 9.837, no ano passado. No entanto, o número de mortes cresceu, com destaque para as de motociclistas: foram 345 óbitos em 2020, contra 297 em 2019. As mortes de ciclistas também aumentaram: de 31 para 37.
O aumento pode estar relacionado à maior circulação de motos e bicicletas em razão da maior procura por serviços de entrega, associado ao desrespeito às regras de trânsito.
“O comportamento deles mudou absurdamente durante a pandemia. Hoje, enquanto eu estava parado no semáforo, contei seis motociclistas que não pararam no sinal vermelho. Andar na contramão virou rotina”, diz Silva, do IOT.
Segundo o ortopedista, neste ano o serviço tem recebido motociclistas acidentados com ferimentos mais graves, muitos deles com necessidade de amputações. “Isso tem acontecido em outros lugares também. Precisamos urgentemente de campanhas educativas e de fiscalização.”