fonte: CIPE

O tratamento cirúrgico de recém-nascidos em países de baixa e média renda (LMICs – low and middle income countries) tem sido negligenciado no campo da saúde global. É o que revela um estudo inédito sobre mortalidade por anomalias congênitas gastrointestinais realizado por cientistas de 74 países, dentre eles o Brasil, publicado no último dia 13 de julho, pela revista The Lancet, uma das mais antigas e reconhecidas revistas médicas do mundo.

Foram coletados dados de cerca de 4.000 bebês de diferentes países, nascidos com problemas congênitos, em 264 hospitais ao redor do mundo, sendo 26 centros brasileiros de Cirurgia Pediátrica.

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A Dra. Marcia Abrunhosa Matias, cirurgiã pediátrica do Hospital Federal de Bonsucesso e membro da organização GICS (Global Initiative for Children’s Surgery), explica que o estudo é oriundo do trabalho de doutorado da Dra. Naomi Wright, do Kings College, de Londres. E explica como surgiu a oportunidade da participação brasileira.

“Fui convidada pela Dra. Naomi Wright, que é membro do GICS e investigadora principal do projeto Global PaedSurg Research Collaboration. Ela é uma cirurgiã pediátrica inglesa em formação, “Clinical PhD Fellow”, (bolsista de doutorado clinico), e que vem se dedicando ao tópico de saúde global desde o seu mestrado. Ela que me chamou para liderar a América do Sul no projeto de pesquisa, e com a expansão do trabalho, a Dra. Maricarmen Olivos Perez, do Chile, se juntou para ajudar com países de língua espanhola, e a Dra. Camila Fachin foi convidada para partilhar e colaborar com a execução a nível Brasil, se tornando líder brasileira junto comigo. A atuação da Dra. Camila foi essencial para o processo de registro do trabalho no Brasil, já que estava fora do país”, ressalta Dra. Márcia Matias, co-líder Sul-Americana e líder nacional do projeto Global PaedSurg Research Collaboration.

A Dra. Camila Fachin, cirurgiã pediátrica e professora adjunta da Universidade Federal do Paraná (UFPR), relata como ocorreu a coleta de dados no país, diante das dificuldades encontradas.

“Como se tratava de um estudo multicêntrico brasileiro e internacional, foi necessária a aprovação inicial do comitê nacional de ética em pesquisa (CONEP), o que levou meses. A partir da aprovação do centro coordenador brasileiro do projeto, no caso a UFPR, os outros centros também tiveram essa autorização. A coleta era feita no hospital, através de uma equipe de 3 pesquisadores por mês. Em cada centro, eles coletavam os dados referentes às sete principais malformações neonatais e os colocavam em um programa eletrônico, chamado Red Cap. Foram incluídos todos os pacientes diagnosticados com atresia de esôfago, hérnia diafragmática congênita, gastrosquise, onfalocele, anomalia anorretal, megacólon congênito e atresia intestinal. Depois de tudo coletado, transmitíamos para a Dra. Naomi, no Kings College London.”, explica a médica, que trabalha no Hospital de Clínicas da UFPR e na Clínica Cirurgia Fetal.

Ela considera que a grandeza do estudo está no número de países envolvidos.

“Pela primeira vez a gente tem uma fotografia do cuidado cirúrgico neonatal das crianças nos diferentes países do mundo, principalmente, das três diferentes rendas: alta, média e baixa. E o Brasil é extremamente importante nisso, afinal, é um país continental, um país de contrastes. Ao mesmo tempo em que temos grandes centros com excelente atendimento médico, temos um interior com um atendimento muito precário. Então, a participação nacional foi muito relevante. E como tivemos muita dificuldade para conseguir a autorização junto aos órgãos brasileiros, só conseguindo fazer essa coleta por dois meses nos 26 centros brasileiros, tive a ideia, juntamente com o Dr. Eduardo Costa e a Dra. Márcia, de continuar essa apuração de dados e fazer um estudo nacional, tentando agregar mais centros, originando, assim, o Paed Surg Brasil.”

A expectativa do novo projeto é chamar atenção para a saúde pública nacional. O estudo é exclusivamente brasileiro, com o intuito de aumentar os números de centros participantes, mas será baseado nos mesmos protocolos do projeto original Global PaedSurg, com a chancelaria da investigadora principal Naomi Wright.

“O objetivo do trabalho é incentivar e mostrar a importância do tópico, além de falar sobre as diretrizes que devem ser desenvolvidas. Precisamos que os Governos Federal, Estadual e Municipal mudem as diretrizes sobre o atendimento ao recém nascido cirúrgico, para assim, diminuir essa diferença com os países de primeiro mundo”, ressalta Dra. Marcia Abrunhosa Matias.

O estudo mundial, publicado na revista The Lancet, foi desenvolvido por uma equipe que já vinha trabalhando no tema saúde global focada em cirurgia para criança. Inclusive, muitos já eram membros da GICS.

“GICS é uma organização voltada para a promoção de recursos e melhor atendimento para crianças que necessitam de cirurgia nos países de baixa e média renda, além do aprimoramento e auxilio na formação de profissionais capacitando-os para o atendimento especializado nestas regiões”, explica Dra. Márcia.

Os resultados confirmaram que muitos pacientes não recebem recursos para os cuidados cirúrgicos neonatais, considerados essenciais em ambientes de alta renda, como: diagnóstico pré-natal, nascimento em centros de cirurgia pediátrica, ressuscitação eficaz, transferência de ambulância a tempo para pacientes nascidos ou encaminhados para hospitais distritais, uso do checklist de segurança cirúrgica, médico anestesista desde a intervenção primária, e recursos de terapia intensiva neonatal básica.

A equipe conseguiu calcular o risco de mortalidade associado ao recebimento ou à falta de acesso a esses recursos. Múltiplos indicadores de condições clínicas ruins foram significativamente associados com maior mortalidade na análise multivariável em LMICs: sepse na apresentação, maior pontuação em ASA na intervenção primária, e a necessidade de transfusão de sangue e ventilação.

A gastrosquise foi a condição que apresentou maior disparidade na mortalidade entre os países de diferentes condições econômicas. Países de baixa renda tiveram uma mortalidade de aproximadamente 90%, enquanto em países de média renda, onde o Brasil se enquadra, teve aproximadamente 40% e o de alta renda 1%. Refletindo que condições congênitas que não afetam a vida de indivíduos nascidos em países de alta renda, podem ser consideradas condição de mortalidade em LMICs.

“O estudo destaca que a maioria dos pacientes com anomalias congênitas gastrointestinais em LMICs não são nascidos no centro de Cirurgia Pediátrica; a maioria é transferida de hospitais distritais. Mesmo em países de alta renda, onde 95% das mulheres receberam um ultrassom pré-natal, nem todas as anomalias foram detectadas. Portanto, capacitar a equipe dos hospitais distritais e maternidades para lidar com partos de pacientes cirúrgicos, ou no encaminhamentos para centros de cirurgia pediátrica são vitais para prevenir a deterioração antes da intervenção cirúrgica. O manejo de neonatos com anomalias gastrointestinais congênitas deve ser incorporado dentro de planos de ação nacionais da OMS para recém-nascido, com um foco particular na prevenção de sepse, hipotermia e hipovolemia”, destaca Dra. Márcia.

A falta de recursos de diagnóstico pode resultar em pacientes perdidos e também na inclusão de pacientes sem a doença. Centralização de atendimento dentro, e entre centros de Cirurgia Pediátrica, e o atendimento da equipe multidisciplinar tem desempenhado um papel fundamental na otimização dos resultados em países de alta renda, mas não foi captado neste estudo, como ressalta Dra. Márcia:

“O trabalho publicado mundialmente fornece evidências de que o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 3.2 para acabar com as mortes evitáveis em neonatos e crianças menores de 5 anos até 2030 é inatingível, sem ação urgente para melhorar o atendimento cirúrgico neonatal em LMICs.”

Este projeto de estudo abrangente permitiu a identificação de fatores associados com a mortalidade neonatal de pacientes cirúrgicos, que pode ser tratada por meio de melhorias em cuidados pré-natais, e em nível distrital, e cuidados em centros de Cirurgia Pediátrica. Para isso, é fundamental a forte colaboração entre obstetras, neonatologistas, cirurgião, anestesista e de enfermagem.

O estudo confirmou a disparidade de resultados nos tratamentos cirúrgicos, além da mortalidade em diferentes condições econômicas. Pode-se dizer que sobrevivência para os bebês nascidos com anomalias congenitais gastrointestinais depende, infelizmente, do lugar de nascimento.