fonte: BBC Brasil

De cada três crianças brasileiras, uma apresenta um quadro chamado anemia ferropriva.

Essa é a principal conclusão de uma pesquisa feita na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), no interior paulista.

Apesar de representar uma queda considerável em relação a um levantamento anterior, feito em 2008, que mostrava que mais da metade do público infantil tinha a doença no país, o número atual ainda é considerado “grave” e “trágico” por especialistas ouvidos pela BBC News Brasil.

Eles ainda chamam a atenção para o fato de que a pesquisa incluiu dados colhidos antes do início da pandemia de Covid-19. Especula-se, portanto, que o cenário pode ter voltado a piorar nos últimos meses, com o aumento da pobreza, da fome e de alguns indicadores que medem a saúde e o estado nutricional das crianças.

“Após o período de amamentação, as carnes são o principal alimento que contribui para que a criança não tenha anemia, pois elas são ricas em ferro”, diz o médico Carlos Nogueira de Almeida, professor da UFSCar e autor principal do estudo.

“Sabemos que a carne já costuma ser cara por natureza e seu preço subiu ainda mais durante a pandemia, o que dificulta seu consumo, principalmente entre a população mais pobre”, completa.

Outro ponto que preocupa os profissionais da saúde é a diminuição no número de consultas e acompanhamentos pediátricos entre 2020 e 2021.

Um exemplo de como esse fenômeno acontece na prática vem da Pastoral da Criança, associação ligada à Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) que trabalha há décadas em questões de saúde, nutrição, higiene e desenvolvimento infantil.

De acordo com a nutricionista Caroline Dalabona, da coordenação nacional da Pastoral, em Curitiba, os grupos de voluntários trabalhavam com cerca de 800 mil crianças até o início de 2020, número que precisou ser reduzido pela metade com o avanço da Covid-19.

“Tivemos que diminuir o acompanhamento, o que complicou o nosso trabalho. Agora focamos aquelas famílias mais vulneráveis, e sabemos que muitas delas estão num momento crítico, com dificuldades na alimentação”, relata a especialista, que notou um aumento nos casos de desnutrição e obesidade infantil nesse período.

Marcada pela deficiência de ferro no organismo, a anemia é um quadro perigoso, que tem várias repercussões à saúde. A falta desse nutriente pode, por exemplo, prejudicar a imunidade e impactar o desenvolvimento do cérebro das crianças, com repercussões irreversíveis para a vida toda.

Mas como uma doença séria como essa se tornou algo tão frequente no Brasil? E o que pode ser feito para reduzir seu impacto?

UM NÚMERO TRÁGICO

Os especialistas da UFSCar compilaram e analisaram os resultados de outros 134 estudos feitos entre 2007 e 2020, que reuniram informações sobre a saúde de 46 mil indivíduos com menos de 7 anos de idade de todas as regiões do Brasil.

A pesquisa foi publicada no periódico científico Public Health Nutrition, mantido pela Universidade de Cambridge, no Reino Unido.

Mas será que esses 33% de crianças com anemia ferropriva representam uma taxa realmente alta? Como isso se compara com séries históricas ou com a realidade de outros países?

“Já esperávamos que os números de acometidos pela anemia seriam elevados, mas, mesmo assim, eles representam uma tragédia”, interpreta Nogueira de Almeida.

“Falamos aqui de uma doença que traz déficits cognitivos. Isso, por sua vez, se relaciona a dificuldades no aprendizado e no raciocínio. E um terço das nossas crianças está com seu potencial prejudicado e pode ter menos oportunidades na vida”, completa.

O especialista informa que o Brasil não possui grandes estudos de campo sobre a quantidade de pessoas acometidas pela anemia, nem faz um acompanhamento periódico da evolução dessa doença pelo país.

O que o time da UFSCar realizou, então, foi uma metanálise, que aglutina dados de diversas pesquisas menores, que avaliaram a realidade de uma cidade ou de uma região. A partir daí, é feito um cálculo estatístico para chegar a uma média mais representativa de todo o país.

A evidência mais sólida de como o tamanho da anemia se alterou ao longo do tempo vem de outro trabalho, feito em 2008 na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), também no interior paulista.

À época, os cientistas analisaram trabalhos feitos entre 1996 e 2007 e concluíram que 53% das crianças brasileiras tinham anemia.

De 2008 para 2021, portanto, é possível notar uma redução de 20 pontos percentuais na comparação entre os dois artigos.

Segundo os especialistas, esse avanço pode ser creditado à melhora na condição socioeconômica dos brasileiros nas últimas décadas.

Também não se pode ignorar o efeito benéfico de algumas políticas públicas recentes, como a fortificação das farinhas de trigo e de milho com ferro e ácido fólico e a disponibilização de suplementos de ferro no Sistema Único de Saúde, o SUS, para gestantes e crianças.

“A situação melhorou, mas esse número de 33% chama a atenção e ainda é grave”, avalia a médica Virgínia Weffort, presidente do Departamento Científico de Nutrologia da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).

No cenário internacional, a situação do Brasil não é das piores, mas está longe de ser confortável.

De acordo com os dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), 40% das crianças com menos de 5 anos do planeta têm anemia.

Apesar de a OMS classificar como 'leve' a anemia infantil no Brasil, dados mais recentes indicam que problema é bem maior
Apesar de a OMS classificar como ‘leve’ a anemia infantil no Brasil, dados mais recentes indicam que problema é bem maior – Reprodução/Organização Mundial da Saúde

Enquanto o problema é classificado como “severo” em boa parte da África e do Sudeste Asiático, a OMS considera “leve” o panorama da anemia no Brasil.

A entidade calcula que nosso país teria, em 2019, cerca de 11% de suas crianças com a doença.

O número, tão abaixo do observado nas pesquisas, vem de órgãos oficiais do país, mas não aponta toda a realidade e o tamanho do problema, segundo a avaliação dos especialistas ouvidos pela BBC News Brasil e as pesquisas de Unicamp e UFSCar.

“Diante de estatísticas que não batem, precisaríamos que cada cidade brasileira tivesse um acompanhamento próprio, o que nos daria um retrato mais fiel da anemia no país”, aponta Weffort, que também é professora da Universidade Federal do Triângulo Mineiro.

CENÁRIO NEBULOSO

Vale destacar ainda que o artigo produzido na UFSCar levou em conta dados que vão até o início de 2020.

Ainda não é possível, portanto, entender o impacto que a pandemia de Covid-19 teve no cenário da anemia em nosso país.

Mas alguns fatores trazem preocupação aos especialistas.

O primeiro deles é a piora geral da condição socioeconômica da população brasileira, com aumento da pobreza, da fome e do desemprego nesses meses, que limitam o poder financeiro e dificultam o acesso a alimentos ricos em ferro, principalmente a carne vermelha.

Esse item, aliás, foi um dos que mais sofreu com o aumento da inflação nos últimos meses. De acordo com uma pesquisa feita pela consultoria LCA, o preço da carne bovina já havia subido 16,2% em 2020 e sofrerá um novo aumento de 17,6% no acumulado deste ano.

Mais especificamente sobre a saúde do público infantil, ainda não é possível notar uma modificação drástica em indicadores de nutrição e segurança alimentar nos últimos meses.

Os dados do Observatório da Criança e do Adolescente, da Fundação Abrinq, indicam uma estabilização na porcentagem de casos de desnutrição crônica (que se mantiveram em 13% entre 2019 e 2020), e um ligeiro aumento na obesidade (que subiu de 6,95% para 7,39% nos dois últimos anos).

Embora esses números não estejam diretamente relacionados com a anemia, eles sinalizam por outras vias como está a qualidade da alimentação dos menores de idade no país.

Para Cíntia da Cunha, líder de programas e projetos de saúde da Fundação Abrinq, o impacto da pandemia ainda é muito recente.

“Nos últimos meses, percebemos um aumento na taxa de mortalidade materna, mas precisamos acompanhar os indicadores por mais tempo e aguardar dados mais robustos antes de chegar num consenso e entender o que está acontecendo”, avalia.

Enquanto isso, na Pastoral da Criança, a nutricionista Caroline Dalabona diz que já é possível ver alguns efeitos da pandemia na saúde das crianças brasileiras.

“Entre 2020 e 2021 notamos um aumento nos extremos, com mais crianças desnutridas ou obesas”, diz.

Vale destacar aqui que a anemia pode aparecer tanto nos pequenos que estão abaixo ou acima do peso –os “extremos”, como classifica Dalabona, costumam estar associados a uma dieta inadequada, com baixo consumo de nutrientes como o ferro, que está em falta nessa doença.

“Mas é preciso dizer que nosso trabalho foi impactado pela pandemia, com queda no número de voluntários e de crianças acompanhadas. Como estamos focando justamente os casos mais graves, é possível que exista esse viés, em que damos maior atenção para os extremos”, pondera a nutricionista.

UM PROBLEMA COM MÚLTIPLAS REPERCUSSÕES

Como explicamos no início da reportagem, a anemia ferropriva é marcada pela falta de ferro no organismo.

Esse nutriente, encontrado no leite materno, na carne vermelha e em alguns vegetais, como as folhas verde-escuras, o feijão e a soja, é essencial para o funcionamento do corpo.

Ele é indispensável, por exemplo, para a fabricação e o funcionamento das hemácias, as células vermelhas do sangue responsáveis por transportar oxigênio dos pés à cabeça.

O ferro também participa de processos do sistema imunológico e garante o bom funcionamento do cérebro.

Quando não comemos uma quantidade suficiente dessa substância, portanto, toda a saúde acaba prejudicada.

E o problema é ainda maior quando pensamos em alguns períodos específicos da vida, como a infância.

“As crianças com deficiência de ferro sofrem alterações no desenvolvimento do cérebro que, mais pra frente, se manifestam com dificuldade de aprendizado, sonolência e desânimo”, explica Weffort.

“E muitos desses problemas repercutem pela vida toda e são irreversíveis”, complementa a especialista.

A CULPA É DE QUEM?

Mas como é possível que uma doença com graves repercussões seja tão frequente assim no Brasil, com 33% das crianças acometidas?

“Tudo começa durante a gestação. Para que o bebê se desenvolva, a mãe precisa passar uma boa quantidade de ferro para ele. Mas há muitos casos em que a própria gestante já apresenta deficiência desse nutriente”, diz Nogueira de Almeida.

É por esse e outros motivos que o pré-natal é tão importante. Nas consultas regulares, a mulher é acompanhada e recebe orientações sobre a necessidade de fazer uma suplementação de ferro durante os nove meses –a medida, inclusive, faz parte dos protocolos do Ministério da Saúde e é possível retirar o remédio (chamado de sulfato ferroso) que previne a anemia na rede pública.

Na hora do parto, há um outro detalhe que faz toda a diferença: o momento certo de fazer o clampeamento e o corte do cordão umbilical.

“Mesmo após o nascimento, a mulher continua por alguns minutos a passar sangue rico em ferro para o bebê pelo cordão umbilical. Se o clampeamento é feito de forma precoce, isso afeta as reservas de ferro dele”, explica o médico.

A orientação é que a mãe e o recém-nascido continuem conectados enquanto o cordão estiver pulsando, o que costuma durar cerca de dois a três minutos depois do parto.

Na sequência, não dá pra ignorar o poder do leite materno, rico em ferro, na prevenção da anemia.

“As crianças que não mamam nunca devem tomar leite de vaca nesses primeiros meses de vida. Além de não ter boa quantidade de ferro, a bebida provoca pequenas hemorragias no intestino, que prejudicam ainda mais a absorção desse nutriente”, alerta o especialista.

No caso em que não é possível realizar a amamentação, as diretrizes nacionais e internacionais indicam o uso de fórmulas infantis específicas para cada idade.

Conforme a criança cresce, surgem novos percalços que ajudam a entender o tamanho do problema.

“Em linhas gerais, as pessoas comem muito mal. Quando pensamos em deficiência de ferro, isso pode ser explicado também pela falta da carne vermelha na dieta, que é uma das principais fontes dessa substância”, observa Weffort.

“Uma parcela da população não consome esse alimento em razão do preço, que fica cada vez mais alto e inacessível. Uma outra parte, que até poderia comprar, não tem o hábito, não gosta, é vegetariana ou vegana”, descreve.

Para lidar com a situação, a Sociedade Brasileira de Pediatria preconiza que todas as crianças de 6 meses a 2 anos também recebam a suplementação de ferro, independentemente de terem sido diagnosticadas ou não com anemia.

A exemplo do que ocorre nas gestantes, esse medicamento está disponível para essa faixa etária na rede pública de saúde.

Apesar de todos os métodos ajudarem a prevenir muitos casos, vale dizer que o diagnóstico da anemia não é nenhum bicho de sete cabeças.

Após uma avaliação em consultório, que leva em conta fatores como os hábitos alimentares e a disposição da criança, o médico pode pedir um exame de sangue que mede duas moléculas: a ferritina, que sinaliza os níveis de ferro no fígado, e a hemoglobina, que estima os estoques da substância nas células vermelhas do sangue.

É POSSÍVEL DIMINUIR O IMPACTO DA DOENÇA?

Para Nogueira de Almeida, o problema da anemia só será efetivamente resolvido com mudanças estruturais.

“É preciso fortalecer várias políticas públicas, com um pré-natal adequado, a necessidade da suplementação de ferro, o incentivo ao clampeamento do cordão umbilical no momento certo e o trabalho de educação em saúde para toda a população”, lista o médico.

Weffort concorda e acrescenta a necessidade de reforçar programas de transferência de renda para a população mais pobre, que garantem o acesso a alimentos de melhor qualidade.

“Os programas de cidadania devem garantir a carne vermelha como produto da cesta básica. E nem precisa ser uma carne nobre: as de segunda são aquelas com a maior quantidade de ferro”, pontua.

Também não podemos nos esquecer da importância da amamentação para, entre outras coisas, garantir uma boa quantia de ferro ao recém-nascido.

“O aleitamento materno exclusivo é recomendado até os seis meses de vida”, lembra Cunha, da Fundação Abrinq.

Para aqueles que não comem carne por opção, gosto pessoal ou filosofia de vida, os médicos e os nutricionistas podem avaliar caso a caso e indicar estratégias para substituir o alimento e garantir boas doses de ferro.

Embora a suplementação seja necessária na maioria desses casos, é possível apelar, por exemplo, para outros ingredientes ricos em ferro, como verduras escuras (como a couve) e leguminosas (caso de feijão e soja).

Uma estratégia inteligente é consumir esses alimentos de origem vegetal junto de fontes de vitamina C, como o suco de laranja e de limão, que aumentam a absorção do ferro pelo organismo.

Mas num país tão diverso como o Brasil, Dalabona acredita que não é possível pensar em fórmulas prontas e recomendações genéricas de dieta para todos.

“Para garantir uma vida saudável e prevenir a anemia, nós devemos sempre fazer adaptações e pensar na realidade das pessoas”, conta

“É preciso ver a alimentação do lugar e aproveitar as riquezas de cada região. Isso não é só mais efetivo, como também respeita e valoriza a cultura local”, finaliza.