fonte: Folha de SP
A proteína p53, conhecida como “guardiã do genoma”, é responsável por exercer uma série de funções nas células, inclusive atuar como supressora de tumores. A presença de formas mutantes dessa proteína está associada a mais de 50% dos tipos de câncer conhecidos hoje.
No entanto, os mecanismos envolvidos tanto no surgimento de formas com “erros de fábrica” —os chamados mutantes— quanto de suas ações no ciclo celular são ainda motivo de investigação.
Agora, um novo estudo, publicado no final de agosto na revista científica Nature Communications, encontrou uma possível causa para essa maior associação da proteína mutante com o desenvolvimento de tumores.
A descoberta é que a presença de mutantes da p53 não seria a única causa para desencadear um ciclo de ações relacionadas ao ganho de função das células tumorais. Importa também, notaram os cientistas, o que ocorre na divisão celular, mais especificamente no processo de divisão dos cromossomos (as estruturas que contêm nossa informação genética dentro das células).
A pesquisa é assinada pela médica e diretora do Centro de Câncer da Universidade Vanderbilt (EUA), Jennifer Pietenpol.
A relação, segundo os autores, seria com o fenômeno chamado de aneuploidia, que consiste em um número diferente de cromossomos nas células, tanto para mais quanto para menos.
As células dos seres humanos possuem 46 cromossomos presentes em pares mais dois cromossomos sexuais –XX no caso das pessoas que nascem designadas como gênero feminino, e XY para aquelas que seriam do gênero masculino ao nascer.
Mas, durante o processo de divisão e replicação celular, alguns erros na divisão podem fazer com que células com um número ímpar de cromossomos sejam geradas, e é nessas células em que a forma mutante da proteína p53 pode ter um ganho de função.
Esse comportamento, fora do padrão e exacerbado, faz com que a p53 perca a sua capacidade de inibir o crescimento de tumores. Pelo contrário, passa a permitir um crescimento anormal de células tumorais, potencialmente mais agressivas, explica o professor da UFRJ Jerson Lima, que também estuda a p53 em seu laboratório e não participou do estudo.
Além disso, a própria aneuploidia já foi descrita como sendo um fenômeno potencialmente tumogênico. Ou seja, células com um número de cromossomos fora do normal tendem a evoluir para formas malignas.
Para desvendar a relação entre aneuploidia e as formas mutantes da p53, os pesquisadores da Universidade Vanderbilt usaram a tecnologia inovadora Crispr-Cas9 (pronuncia-se “crísper”), uma espécie de edição do genoma. Com ela, é possível editar com precisão o DNA de micro-organismos, plantas e animais.
Eles compararam no trabalho dois tipos de mutantes da p53 e uma forma normal, além de terem observado uma célula de onde a proteína p53 foi removida.
Eles contaram então quantas das células apresentavam o padrão de aneuploidia e, em seguida, avaliaram se o número anormal de cromossomos estava associado a um fenótipo (característica) mais ou menos agressivo.
Os cientistas descobriram assim que os fenótipos com ganho de função tumoral estavam também associados a uma maior ocorrência de aneuploidia, mas não necessariamente estavam ligado a uma ou outra forma mutante da proteína.
Na etapa seguinte, as células tumorais foram implantadas em animais para avaliar se geravam tumores mais agressivos ou com maior potencial de metástase. Eles viram então que, na maioria dos casos, sim, havia uma associação.
“O conceito de mutantes da p53 com ganho de função foi introduzido há 30 anos e, desde então, diversas pesquisas já descreveram de diversas formas como os fenótipos mutantes podem estar associados à oncogênese”, disse Pietenpol.
“Mas as evidências de como funciona o mecanismo eram ainda contraditórias. Nosso estudo demonstrou que a aquisição de aneuploidia pode gerar uma variedade de mutantes da p53 previamente descritos e fornecer um mecanismo unificador que inclui um conjunto amplo de fenótipos cancerígenos previamente atribuídos unicamente à p53.”
A pesquisa é interessante porque abre outras possibilidades de estudo até mesmo para moléculas-alvo que podem agir nesse foco de mutação, afirma Lima, da UFRJ.
“Apesar de terem usado mutantes clássicos da p53, que já foram bem descritos na literatura, o estudo aponta que uma alteração no número de cromossomos vai estar associada também a uma alteração na expressão de várias proteínas que fazem parte dessa rede de interação da p53.”
Para ele, tanto a medicina de precisão, com o desenvolvimento de drogas cada vez mais potentes e capazes de agir especificamente para cada tipo de tumor, quanto a medicina diagnóstica podem se beneficiar de pesquisas desse tipo.
“A detecção de aneuploidia não é tão difícil. O ideal é sequenciar toda a linhagem de células, mas uma detecção da mutação como foi feito no estudo já pode ter potencial inclusive preventivo, para encontrar um tumor ainda no início”, explica.