fonte: BBC Brasil

Um estudo encomendado pelo Ministério da Saúde mostrou que 1 em cada 10 crianças brasileiras de até 5 anos está com o peso acima do ideal: são 7% com sobrepeso e 3% já com obesidade.

O Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil (Enani-2019), coordenado pelo Instituto de Nutrição Josué de Castro, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), indica ainda que um quinto das crianças (18,6%) na mesma faixa etária está em uma zona de risco de sobrepeso.

No estudo, foram considerados indicadores de 2019, período anterior à pandemia de Covid-19 e durante o qual especialistas acreditam que os indicadores possam ter piorado ainda mais devido a mudanças na rotina de alimentação, atividade física e consultas médicas.

Os dados anteriores do mesmo estudo datam de 2006, e desde então o cenário mudou muito. A prevalência de excesso de peso em crianças nessa faixa etária aumentou de 6,6% em 2006 para 10%, em 2019.

Os dados soaram um alerta para a comunidade médica, que já monitorava outras pesquisas sobre excesso de peso na infância. A mais recente delas, divulgada pelo Ministério da Saúde em 2021, estima que 6,4 milhões de crianças têm excesso de peso no Brasil e 3,1 milhões já evoluíram para obesidade.

“O que realmente nos preocupa é a tendência de aumento. No passado a obesidade era um fenômeno concentrado principalmente entre adultos, mas aos poucos ela foi atingindo também os adolescentes, as crianças mais velhas e agora as de menos de 5 anos”, disse Inês Rugani, pesquisadora do Enani-2019, à BBC News Brasil.

A nutricionista e especialista em saúde pública chama a atenção para o fato de que o estudo identificou uma prevalência maior excesso de peso entre as crianças menores, de até 23 meses de idade, com 23% delas acima do peso. Os menores de 24 a 35 meses estão em segundo lugar (20,4%), seguidos pelos de 36 a 47 meses (15,8%) e 48 a 59 meses (14,7%).

“O fato de que as crianças menores têm uma prevalência um pouco mais alta do que as mais velhas aponta para uma perspectiva de piora no futuro”, afirma.

Segundo Rugani, meninos e meninas com obesidade correm riscos de desenvolverem doenças nas articulações e nos ossos, diabetes, doenças cardíacas e até câncer. “Crianças obesas têm ainda mais chances de se tornarem adultos obesos”, diz.

A BBC News Brasil conversou com médicos, pediatras e nutrólogos que apontaram as principais razões que explicam o crescimento no sobrepeso e obesidade entre as crianças brasileiras.

Alimentos ultraprocessados

A obesidade infantil é resultado de uma série complexa de fatores genéticos e comportamentais, que atuam em vários contextos como a família e a escola. Segundo os especialistas ouvidos, porém, os maiores responsáveis pelo aumento de peso entre as crianças brasileiras são os alimentos ultraprocessados.

Sucos de caixinha, refrigerantes, biscoitos recheados, salgadinhos e macarrão instantâneo são alguns dos produtos mais consumidos pelos pequenos atualmente.

Segundo Cintia Cercato, endocrinologista da Universidade de São Paulo (USP) e presidente da Abeso (Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica), o Brasil passa há alguns anos por um processo de mudança no ambiente alimentar.

E se antes muitas famílias tinham dificuldade de acesso a alimentos prontos ou industrializados, hoje eles se tornaram mais baratos e disponíveis.

Entre as famílias entrevistadas pelo Enani-2019, a prevalência do consumo de alimentos ultraprocessados chegou a 93% entre crianças de 24 a 59 meses e 80,5% entre crianças de 6 a 23 meses. Já o consumo de bebidas adoçadas atinge 24,5% dos pequenos entre 6 a 23 meses, 37,7% dos de 18 a 23 meses e 50,3% das crianças de 24 a 59 meses.

Além de muitas vezes terem um custo mais baixo do que os alimentos in natura, os industrializados também são propagandeados na televisão e na internet com um marketing muito específico para os pequenos.

“As embalagens são coloridas e com personagens, e nos supermercados os produtos ultraprocessados costumam ficar nas prateleiras mais baixas, na linha de visão das crianças. Dessa forma é difícil que os pequenos não sintam vontade de experimentar”, diz Cercato.

Em outubro de 2022, entrará em vigor novo padrão de rotulagem de alimentos e bebidas industrializadas aprovado pela Anvisa em 2020. As embalagens deverão apresentar um selo frontal com símbolo de lupa para informar sobre altos teores de açúcar, gordura e sódio.

Ainda assim, a endocrinologista defende uma regulamentação mais restrita, com leis que impeçam o uso de personagens e celebridades infantis nas embalagens e anúncios, assim como a distribuição de brindes com os alimentos. “As crianças ainda não têm discernimento suficiente para não serem atraídas por esse tipo de marketing pesado”, diz.

Para garantir a melhor alimentação possível, os nutricionistas e pediatras recomendam que os pais sigam as instruções dadas pelo Guia Alimentar para Crianças Brasileiras elaborado pelo Ministério da Saúde.

“A alimentação da criança deve ser composta por comida de verdade, isto é, refeições feitas com alimentos in natura ou minimamente processados de diferentes grupos (por exemplo, feijões, cereais, raízes e tubérculos, frutas, legumes e verduras, carnes)”, diz a cartilha.

“O número de refeições ao longo do dia e a quantidade de alimentos oferecidos devem aumentar conforme a criança cresce para suprir suas necessidades”.

O guia afirma ainda que refeições com maior variedade de alimentos são as mais adequadas e saudáveis para a criança e toda a família. “Sempre que puder, varie a oferta de alimentos ao longo do dia e ao longo da semana”.

Há ainda outras opções de cartilhas disponíveis na internet, como o Guia Prático de Alimentação para crianças de 0 a 5 anos elaborado pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e o e-book Lancheira Saudável, da Abeso, que dá ideias saudáveis de lanches para levar para a escola.

Mudanças nos padrões de amamentação

Outro problema identificado pelos especialistas é o não cumprimento do aleitamento materno exclusivo até os seis meses de idade, associado à introdução dos industrializados já durante os primeiros meses de vida.

Segundo o Enani-2019, menos da metade (45,8%) dos bebês menores de 6 meses mamam exclusivamente no peito da mãe.

“O leite materno é sempre a melhor opção e, por isso, aconselhamos a amamentação exclusiva até os seis meses e até pelo menos os 2 anos”, diz a nutricionista Inês Rugani. “A partir dos seis meses a introdução alimentar é recomendada, mas deve-se priorizar alimentos naturais e com ampla variedade de nutrientes, o que infelizmente nem sempre ocorre”.

Por variados motivos, muitas mães não conseguem amamentar e acabam optando pela fórmula. Segundo os especialistas, ela é a melhor opção nesses casos, mas deve ser evitada quando o leite materno estiver disponível e não fizer mal à criança.

“Tomar leite na mamadeira produz menos saciedade do que a amamentação. Além disso, a criança fica mais passiva do que quando está mamando no peito, o que pode ser prejudicial para o futuro, quando tiver que pegar e buscar os alimentos”, diz Rubens Feferbaum, pediatra e nutrólogo, presidente do Departamento de Nutrição da Sociedade de Pediatria de São Paulo (SPSP).

Segundo o médico, crianças que tomam fórmula ou leite de vaca industrializado também podem apresentar maior ganho de peso.

Falta de atividade física

Outro componente importante para o aumento nas taxas de sobrepeso e obesidade é a mudança nas atividades dos pequenos. Segundo os especialistas, cada vez mais as crianças têm preferido brincadeiras com pouco ou nenhum movimento.

“O estilo de vida das crianças mudou e agora elas passam muito tempo sentadas ou deitadas, assistindo televisão, jogando videogame e navegando no celular ou tablet”, diz Rubens Feferbaum. “Parte do tempo que no passado era usado para brincadeiras que exigiam correr, dançar e pular agora vai para a tecnologia”.

A falta de espaço físico para atividades mais dinâmicas também se tornou um problema. “Enquanto algumas famílias vivem em regiões periféricas onde não há parques ou segurança na rua, outras crianças passam o dia trancadas em apartamentos no meio da cidade”, opina Inês Rugani.

Segundo a especialista, não há uma recomendação padrão para a prática de atividade física pelas crianças, como existe para os adultos. “O que elas precisam é brincar, ter espaço para correr e se movimentar, e não ficar paradas na frente da TV por horas”, diz.

O Ministério da Saúde, porém, orienta para algumas boas práticas no Guia de Atividade Física para a População Brasileira. O documento, por exemplo, recomenda pelo menos 3 horas por dia de atividades físicas para crianças de 1 a 5 anos, com variações de intensidade de acordo com a faixa etária.

“Para as crianças, a atividade física é feita principalmente em jogos e brincadeiras ou em atividades mais estruturadas, como a participação em escolinhas de esportes e em aulas de educação física”, diz a cartilha.

Influência da família

Os hábitos adotados pelos pais e demais familiares também podem ter influência no peso da criança, de acordo com os médicos ouvidos pela reportagem.

“A cultura familiar é muito importante, pois as crianças consomem os alimentos oferecidos pelos pais e seguem as regras da casa quando se trata de tempo de tela”, diz Rubens Feferbaum.

Além disso, é durante a infância que muitos dos hábitos alimentares que levamos para toda a vida são formados. E muito do que é aprendido pela criança é absorvido por meio da observação.

“É importantíssimo que os pais deem bons exemplos, especialmente até os dois anos de idade, quando o paladar é formado”, afirma Cintia Cercato, da Abeso. “Oferecer alimentos diversos e em vários formatos e combinações diferentes é sempre uma boa ideia, assim como organizar refeições em família para que a criança se sinta motivada a comer bem”.

A especialista ainda recomenda convidar as crianças sempre que possível para participar do preparo dos alimentos, de forma que elas se sintam incluídas na rotina alimentar da família.

Por outro lado, a genética também tem um peso importante. Segundo Cercato, a chance de filhos de pais obesos sofrerem do mesmo problema pode chegar a 80%. Mas, se os pais têm peso normal, a probabilidade cai para menos que 10%.

O peso durante a gestação também pode afetar a situação do bebê. “O IMC da mãe durante a gestão pode estar intimamente relacionado ao peso futuro da criança”, diz Feferbaum.

Especialistas afirmam que é possível controlar o peso na gravidez, mas, para melhores resultados, é fundamental fazer mudanças no estilo de vida antes mesmo de engravidar.

Falta de acompanhamento especializado

Segundo o pediatra e nutrólogo Rubens Feferbaum, a falta de acompanhamento periódico das crianças por um médico especializado também pode estar contribuindo para o aumento dos casos de sobrepeso e obesidade.

“Nem todas as famílias no Brasil tem um acompanhamento regular com um pediatra”, diz o médico. “Há uma cultura nacional de só levar os filhos ao médico em casos de emergência, mas o ideal é acompanhar a evolução da altura e do peso com visitas regulares”.

Para o especialista, é muito mais fácil e possível reverter o quadro de ganho de peso quando ele é identificado precocemente. “Após os 5 anos e sobretudo na adolescência, a obesidade se torna mais difícil de reverter. Na verdade, quando mais a obesidade se estende na linha do tempo de uma criança pior será o prognostico para ela”.

Quando o sobrepeso ou a obesidade são identificados pelo pediatra, o indicado é que a criança seja encaminhada para um médico especializado, como um nutricionista ou endocrinologista.

“Por conta das altas taxas de desnutrição que o Brasil apresentou no passado, é comum que pais acreditem na crença de uma criança roliça é sinônimo de saúde. Mas isso não é verdade e só um acompanhamento médico responsável pode determinar o peso e a altura certa de cada uma”, diz Inês Rugani, pesquisadora do Enani-2019.

Pandemia

Os dados do Enani-2019 não englobam o período da pandemia de Covid-19, mas outras pesquisas realizadas no Brasil e no mundo já demonstram o impacto dos períodos de isolamento no peso de crianças de adolescentes.

Um estudo desenvolvido pela Sociedade Brasileira de Pediatria e publicado na revista científica Jornal de Pediatria, mostrou que alguns comportamentos do isolamento estão acarretando ganho de peso nos pequenos.

A explicação é simples: a falta de gasto energético nas brincadeiras ao ar livre, na escola e também a suspensão dos exercícios físicos, associados ao maior tempo diante das telas, contribuíram para o problema.

Outra pesquisa, do Instituto de Comunicação e Informação em Saúde (Icict/Fiocruz), em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), indica que ouve aumento no consumo de doces e congelados, bem como no sedentarismo, por crianças e adolescentes. O percentual de jovens entre 12 e 17 anos que não faziam 60 minutos de atividade física em nenhum dia da semana antes da pandemia era de 20,9%, e passou a ser de 43,4%.

E por mais que não existam ainda dados sobre o aumento de peso real durante o período de isolamento no Brasil, os especialistas ouvidos pela BBC News concordam que haverá um aumento considerável nos índices de sobrepeso e obesidade nos próximos anos.

“Sabemos que os índices vão piorar, e não somente porque a frequência de atividades físicas diminui no período de isolamento, mas também por conta da recessão econômica, que afeta diretamente a qualidade da alimentação do brasileiro”, diz Inês Rugani, do Enani-2019.

Para Rubens Feferbaum, do Departamento de Nutrição da Sociedade de Pediatria de São Paulo (SPSP), é preciso considerar também o impacto da pandemia na saúde mental das crianças e adolescentes.

“Ao ficarem presas em casa, sem ir à escola ou encontrar os amigos, muitas crianças e adolescentes desenvolveram ansiedade e depressão”, diz. “Esses fatores muitas vezes impactam na forma como os jovens se alimentam, pois podem gerar compulsão alimentar”.

E se ainda não existem dados sobre o ganho de peso durante a pandemia no Brasil, já há informações sobre o cenário nos Estados Unidos. Uma pesquisa do Centro de Controle de Doenças (CDC) do Departamento de Saúde dos EUA mostrou que o percentual de crianças e adolescentes obesos no país aumentou para 22%, em comparação com 19% antes da Covid-19.

“O estudo americano mostra um crescimento preocupante na curva de obesidade nos Estados Unidos, e no Brasil não deve ser tão diferente”, diz Cintia Cercato, da Abeso.