fonte: MedScape

Um estudo de coorte retrospectiva realizado no Canadá mostrou que não é raro que algumas condutas adotadas com frequência em casos de trauma pediátrico tenham causem dano ao paciente.

Os cuidados de saúde de baixo valor — definidos como aqueles em que o potencial de dano supera o de benefício — representam mais de 30% das despesas em saúde nos Estados Unidos.

No caso específico do trauma pediátrico, há diversos fatores que aumentam a vulnerabilidade dos pacientes a cuidados de baixo valor, como a heterogeneidade das apresentações clínicas ao longo dos espectros de idade e desenvolvimento, falta de conhecimento no tratamento do trauma pediátrico, falta de evidências robustas que respaldem as práticas e centralização de especialistas em poucos centros urbanos.

Pesquisadores canadenses decidiram, então, avaliar a incidência dos cuidados de baixo valor no trauma pediátrico. Para isso, realizaram um estudo de coorte retrospectivo em 59 centros de trauma na província de Quebec, no Canadá. Os resultados foram publicados no periódico JAMA Network Open em 29 de outubro de 2024.

No estudo, foram avaliados crianças e adolescentes com até 16 anos, atendidos entre 2016 e 2022. Os dados foram extraídos de registros de internação hospitalar, e foram incluídos mais de 10 mil pacientes, o que, os autores estimam, corresponde a mais de 90% dos casos de traumas pediátricos da região no período estudado.

Os pesquisadores identificaram 19 práticas que tinham baixo valor segundo as diretrizes de trauma pediátrico, sendo 11 relacionadas a exames de imagem, uma ligada a reanimação volêmica, uma a avaliação do especialista, duas ao tratamento de lesões de órgãos sólidos, e uma a profilaxia de tromboembolia venosa.

Todas as condutas de baixo valor relacionadas a exames de imagem foram realizadas em menos de 10% dos pacientes da amostra. As práticas mais observadas pelos pesquisadores foram solicitação de avaliação do neurocirurgião na ausência de lesões intracranianas (13 em 1.000 internações), e a hospitalização por traumatismo craniano leve (98 em 1.000 internações).

Já as outras condutas avaliadas, como hospitalização por trauma abdominal isolado e profilaxia de tromboembolia venosa em crianças pré-púberes, foram bastante raras.

Os autores também compararam os atendimentos feitos em centros de referência para trauma pediátrico com os de crianças levadas a centros de trauma para adultos; eles perceberam que, de forma geral, as condutas de baixo valor eram menos frequentes quando os atendimentos eram realizados por especialistas em pediatria.

“Essas práticas podem representar alvos prioritários para intervenções de desimplementação, particularmente porque podem ser avaliadas a partir de dados coletados rotineiramente”, escreveram os autores do estudo.

Apesar do desafio de se interromper uma prática frequente em um determinado serviço, eles destacam a importância do estabelecimento de regras para tomada de decisões clínicas, para ferramentas de decisão compartilhada, listas de verificação e métricas de qualidade.

Em um editorial que acompanha o estudo, a Dra. Jillian M. Cotter, médica no Departamento de Pediatria da University of Colorado e no Children’s Hospital Colorado, ambos nos EUA, e o Dr. Eric R. Coon, médico no Departamento de Pediatria do Seattle Children’s Hospital, também nos EUA, comentaram que a necessidade de tomada de decisão rápida em um ambiente de alta pressão provavelmente aumenta o risco de condutas de baixo valor no trauma pediátrico. “Ninguém quer deixar de diagnosticar um sangramento intracraniano grave em uma criança”, escreveram.

Eles também destacam que a maioria das crianças com lesões traumáticas são atendidas em centros voltados para tratamento de adultos, de forma que o desconforto do médico no atendimento de uma criança pode justificar a adoção de condutas de baixo valor. Além disso, muitas vezes é necessário transferir a criança para outro hospital com maior complexidade ou encaminhá-la para a avaliação de um especialista, e o processo de transição do cuidado para outra unidade também pode tornar mais frequente o uso de práticas de baixo valor.

Os editorialistas concordam com os autores do estudo quanto à necessidade de abandonar essas condutas — e quanto ao desafio que essa mudança representa. Eles destacam a importância de identificar e medir a ocorrências dessas práticas, bem como de enfrentar as dificuldades para oferecer atendimentos baseados em evidências.

“O uso dessas práticas individualmente pode estar relacionado à experiência do médico ou à preferência dos pais”, escreveram os pesquisadores, “e uma incidência de 0% não deve ser a meta”.

Eles destacaram, por fim, que os achados podem gerar oportunidades para melhorar o sistema de saúde como um todo.