fonte: Medscape

Jason Krastein se lembra de quando era jovem e via seu pai, um nefrologista, voltando do hospital para organizar as evoluções dos pacientes e preparar os prontuários para o dia seguinte antes de passar um tempo com a família. Como estudante de medicina do quarto ano, Jason está repetindo esse mesmo padrão.

“Preparar os prontuários em casa é uma dessas coisas que ninguém te ensina na faculdade de medicina”, disse Jason, que está concluindo seus estudos na George Washington School of Medicine, nos EUA. “Você pensa que as atividades terminam ao sair do hospital, mas essa não é a realidade. Você precisa finalizar as evoluções, acompanhar os exames laboratoriais e pensar sobre os casos dos pacientes para o dia seguinte. Mesmo quando estou sentado no meu sofá, pego meu notebook e vou digitar alguma coisa. É uma tarefa constante.”

Pesquisas do Medscazpe

O Medscape realiza pesquisas contínuas com médicos e outros profissionais da saúde sobre os principais desafios da prática clínica e questões atuais, produzindo análises de alto impacto. Por exemplo, o Medical School Experience Report 2024 publicado pelo Medscape mostrou que:

  • 53% dos estudantes de medicina entrevistados recomendariam sua faculdade;
  • 28% dos entrevistados estavam muito satisfeitos com sua experiência na faculdade de medicina;
  • 8% estavam um pouco insatisfeitos com seus professores;
  • 56% dos estudantes de medicina estavam preparados em alguma medida para a residência;
  • 30% estavam muito confiantes de que seriam aprovados no processo seletivo para a residência.

Para Jason e outros estudantes de medicina, existe um “currículo oculto” na faculdade de medicina, composto por lições informais não escritas e por valores aprendidos fora de ambientes acadêmicos formais que moldam a cultura da medicina, influenciam o comportamento e determinam a abordagem no atendimento ao paciente e os relacionamentos profissionais.

Esse currículo oculto traz ensinamentos sobre resiliência, inteligência emocional e uma compreensão mais profunda do lado humano da medicina. As lições podem ocorrer em momentos informais, nas conversas durante corridas de leito ou com pacientes, ao observar professores lidando com casos difíceis ou ao ver como os colegas e mentores lidam com os desafios.

Alguns estudantes de medicina do quarto ano nos EUA compartilharam exemplos pessoais relacionados ao currículo oculto que as escolas de medicina não ensinam.

Hierarquia na assistência à saúde

“Cada hospital e cada especialidade tem um sistema único de interação entre estudantes, residentes e médicos assistentes”, disse Jake Graff, que está terminando seus estudos no Noorda College of Osteopathic Medicine.

“Não sei se me ensinaram alguma coisa sobre isso formal ou informalmente, mas durante os estágios, eu observava como os outros estudantes e residentes interagiam e reproduzia o mesmo comportamento.”

Diretrizes implícitas

Os estudantes nem sempre têm acesso aos protocolos e preferências de cada hospital e programa de residência, disse Jake, que também é presidente do conselho de estudantes de medicina da American Academy of Emergency Medicine. “No meu caso, a maior parte das descobertas sobre regras implícitas tem sido por tentativa e erro.”

Por exemplo, o estudante passou por um estágio em um hospital que usava um certo tipo de sutura para reparos em lacerações. “A sutura era exatamente o contrário do que haviam me ensinado em um cenário de estágio anterior e em orientações prévias dadas por médicos assistentes.”

Após concluir o primeiro reparo, o estudante percebeu que o residente e o médico assistente queriam uma sutura diferente. Nesse caso, a decisão de Jake não influenciou a recuperação do paciente. “Entretanto, pude perceber que havia cometido um erro e acabei mudando a maneira como realizava as suturas nesse estágio para seguir a cultura [local].”

Nuances na comunicação

Durante o estágio de ginecologia e obstetrícia, a estudante Kate Spencer percebeu que nem todos os bebês tinham pais animados e participativos. “Muitos tinham pais com quartos decorados esperando por eles em casa.” Por outro lado, outros eram filhos de pais adolescentes ou de pessoas com dificuldades financeiras, disse Kate, que está no último ano de faculdade na Drexel University College of Medicine.

“Os sinais sutis que eu percebia durante as corridas de leito, coisas que eu notava durante o trabalho de parto e na sala de parto, tudo isso moldava a reação [dos pais] ao parto” e, consequentemente, como Kate definia sua atitude à beira do leito.

Jargões médicos

Kate também disse ao Medscape que tenta ter empatia com seus pacientes e levar em conta o conhecimento limitado desses indivíduos sobre medicina.

“Estar internado é uma experiência muito opressiva, especialmente para pacientes que não têm conhecimento médico.” A estudante percebe rapidamente quando os pacientes não conseguem entender o que está acontecendo.

“Alguns deles se sentem constrangidos e envergonhados”, explicou Kate. Outros querem voltar a dormir ou acreditam que estão sendo inconvenientes ao pedir mais explicações.

Ela disse que dedica um tempo para simplificar os termos médicos para seus pacientes e detalhar cuidadosamente o tratamento. “Se eu achar que eles não entenderam muito bem, peço que repitam o que expliquei para ter certeza de que estamos em sintonia. Quando você coloca sua saúde nas mãos de outras pessoas, imagine como é muito mais estressante quando você não tem certeza do que está acontecendo ou por que está acontecendo.”

Defendendo os pacientes

Ao ter contato com a assistência clínica, a estudante Roosha Mandal percebeu a natureza frequentemente impessoal da medicina. “Ficava irritada quando os pacientes eram designados apenas pelos seus quadros clínicos ou doenças por outros médicos, enquanto eu tive a oportunidade maravilhosa de conhecê-los como pessoas”, disse Roosha, que está em seu último ano na University of Illinois College of Medicine.

“Como uma estudante com tempo extra em comparação aos residentes e médicos assistentes, fiz questão de não apenas aprender sobre as doenças dos meus pacientes, mas também [entender] o que é importante para eles em suas vidas diárias. Nas corridas de leito, às vezes eu me sentia como se estivesse fornecendo uma informação ‘privilegiada’ sobre a família ou a situação de vida de alguém, quando na verdade essa informação poderia ter sido facilmente obtida em uma conversa rápida”, disse ela.

Roosha disse que trabalhar em um cenário de saúde urbano também permitiu que ela visse que pacientes com recursos limitados tinham dificuldade em continuar o tratamento após deixar o hospital.

“Um dos pacientes que eu acompanhei estava lidando com um transtorno [por uso] de opioides em meio a uma perda de emprego e residência fixa. Embora nossas discussões sobre o tratamento médico dele frequentemente fossem voltadas à dependência, muitas vezes eu me perguntava qual seria o sentido de manter um acompanhamento ou solicitar exames se ele não tivesse um meio de transporte ou sistemas de apoio estáveis. Mesmo no meu curto período envolvida no seu tratamento, me concentrei em aspectos sociais que influenciariam o seu caso, como conectá-lo a serviços móveis de redução de danos e moradia segura próximos de onde ele morava.”

Questões éticas nebulosas

As discussões sobre os cuidados de fim de vida estão entre as áreas éticas nebulosas com as quais os estudantes têm de lidar fora do seu ambiente de treinamento formal. Jake ressaltou que pacientes com ordens de não ressuscitação ou não intubação ainda podem precisar de intervenção médica.

“Explorar o que o paciente gostaria [que fosse feito] em conjunto com seus parentes próximos pode representar uma conversa íntima e desafiadora. Ter uma ordem de não ressuscitar não significa não tratar, mas é essencial garantir que a equipe do pronto-socorro e a família tenham o mesmo entendimento.”

Lidando com perdas

Jason relembrou sua primeira conversa sobre cuidados de fim de vida com um paciente e sua família. “Após muita discussão, eles decidiram interromper o tratamento e focar no conforto. Ele queria passar os últimos dias [de vida] em casa, e não em um leito de hospital rodeado por monitores apitando.”

“Lembro-me de sair daquele quarto com uma mistura estranha de emoções: orgulho de poder ajudar a guiar uma conversa tão importante, mas também uma tristeza profunda”, disse Jason.

“Foi a decisão certa para ele, e eu verdadeiramente acreditava nisso, mas saber que o paciente estava deixando o hospital para ir morrer em casa não era algo que eu pudesse simplesmente ignorar. Naquela noite, senti o peso daquele caso e pensei no homem, na sua família e na confiança que depositaram em mim e na minha equipe durante um momento tão vulnerável.”

Jason apontou que a faculdade de medicina ensina os estudantes a cuidar, diagnosticar e tratar os pacientes, mas não a como lidar com os sentimentos que surgem quando eles morrem.

Resiliência emocional

“Como a maioria dos estudantes, tive dias com casos desafiadores, pacientes difíceis e uma fila de espera interminável. Uma das melhores médicas com quem trabalhei sempre dizia ‘vamos comer alguma coisa’ no momento certo. Durante nossa caminhada até a cafeteria e o retorno, ela falava discretamente sobre seus desafios e como ela os superou. Ela focava em amar os pacientes, estar disponível, ser profissional e fazer o trabalho necessário. Como um jovem estudante de medicina, ouvir isso era inspirador, e nunca mais voltei ao hospital frustrado.

Equilíbrio entre trabalho e vida pessoal

Jason descreveu como foi sair de um plantão de ginecologia e obstetrícia de 24 horas, caminhando até o carro enquanto o sol nascia. “A noite havia sido implacável: cesarianas de emergência, manejo de complicações e correria de um quarto para o outro. Quando o plantão terminou, não conseguia me lembrar da última vez que havia sentado ou comido”, lembrou ele.

“Ao voltar para casa, senti-me vazio e completamente exaurido. Eu havia dito para mim mesmo que iria descansar quando chegasse em casa, mas, em vez disso, caí na cama, ainda com a roupa do hospital, e acordei horas depois desorientado e mais cansado do que antes. Não era apenas o desgaste físico, mas também uma sensação crescente de dissociação. Comecei a perceber que não estava sentindo a mesma alegria ou realização que costumava sentir, mesmo após partos bem-sucedidos ou desfechos positivos. Essa foi a primeira vez que reconheci os sinais de esgotamento, quando a exaustão começou a ofuscar todo o resto.”

A formação médica exigiu até mesmo que ele perdesse o casamento do melhor amigo. “Fui escalado para um plantão de 24 horas na cirurgia do trauma. Tentei de tudo — trocar o plantão, encontrar alguém para me cobrir —, mas não havia como contornar a situação. Naquele dia, enquanto atendia um caso de emergência após o outro na sala de cirurgia, eu continuava pensando na cerimônia que estava perdendo.”

“Mais tarde naquela noite, em um raro momento no qual consegui me sentar, vi as postagens no Instagram das pessoas celebrando e senti a dor de perder esse marco. A medicina está cheia desses sacrifícios – aniversários, casamentos, feriados – até mesmo uma noite tranquila com a família. A parte mais difícil é saber que a vida não pausa enquanto você está ligado às suas responsabilidades e, às vezes, você tem de aceitar que estará ausente nos momentos que mais importam.” Isso é algo que a faculdade de medicina não ensina.