fonte: BBC

Foi somente aos 41 anos de idade, quando já era casada e mãe de duas filhas adotivas, que a advogada americana Kimberly Zieselman descobriu que era intersexual. Ela lembrava de ter se submetido a uma cirurgia aos 15 anos de idade, após ter sido levada ao médico por seus pais, preocupados porque a menina não ficava menstruada.

Segundo Zieselman, os médicos disseram na época que ela tinha órgãos reprodutivos femininos parcialmente formados e que, sem cirurgia, corria o risco de desenvolver câncer. “Então meus pais foram convencidos a aceitar a cirurgia. O que disseram a eles — e o que eu cresci ouvindo — é que fui submetida a uma histerectomia, à remoção de órgãos femininos”, diz Zieselman à BBC News Brasil.

Quando, décadas depois, ela buscou seu histórico médico, o documento trazia termos como “pseudo-hermafroditismo masculino” e “feminização testicular”. Zieselman então descobriu que, na verdade, tinha uma condição chamada Síndrome de Insensibilidade Androgênica, que afeta a resposta do organismo a hormônios masculinos.

Apesar de ter nascido com um par de cromossomos XY, relacionados ao desenvolvimento de aparência masculina, seu corpo desenvolveu aparência feminina. Mas em vez de ovários e útero, ela tinha testículos internos, e foi isso que a cirurgia, feita em 1982, removeu.

“Eu então comecei terapia de reposição hormonal, e me disseram que eu não deveria falar sobre o assunto, que era privado, que era raro, e que eu era provavelmente a única pessoa no mundo (com essa condição)”, lembra.

Zieselman lamenta que tenha sido submetida à cirurgia sem seu consentimento e diz que até hoje sofre impacto emocional e físico, incluindo a necessidade de tomar hormônios pelo resto da vida, o que não seria necessário se tivesse mantido os testículos internos.

“Acredito que todos, incluindo os médicos, pensavam que estavam fazendo o melhor para mim. Acho que não me contaram porque eu me identificava, e sempre me identifiquei, como mulher, tinha uma vida feliz. Acho que não queriam me assustar”, afirma.

“Mas, na verdade, todas as mentiras, e a orientação de que eu mantivesse isso em segredo, fizeram com que eu me sentisse diferente, envergonhada. Acho que me fez ainda mais mal emocionalmente e psicologicamente do que fisicamente.”

Hoje, aos 53 anos de idade, Zieselman é diretora-executiva do interACT, organização dedicada à proteção dos direitos humanos e legais de jovens intersexuais. Ela e sua organização fazem parte de um grupo crescente de ativistas nos Estados Unidos que buscam proibir cirurgias consideradas “clinicamente desnecessárias” em crianças intersexuais antes que estas tenham idade para consentir e decidir se querem ou não passar pelo procedimento. Não foi especificado que idade seria essa.

O termo intersexual é usado para descrever mais de 20 diferentes condições em que bebês nascem com genitália, órgãos reprodutores ou cromossomos que não se encaixam inteiramente na definição típica de masculino ou feminino. Estima-se que 1,7% da população tenha essas características.

Há bebês que nascem com genitália de aparência ambígua, que não é claramente pênis nem vagina, e outros que nascem com genitais de aparência definida, mas que não combinam com os órgãos reprodutores internos. Há bebês com genitais masculinos e ovários, outros que desenvolvem ovários e testículos, alguns que têm uma combinação de cromossomos diferente de XY (masculino) ou XX (feminino), e vários outros casos.

Em algumas situações, bebês intersexuais podem precisar de cirurgia de emergência para, por exemplo, conseguir urinar. Mas, em outros casos, é discutida com os pais a possibilidade de cirurgia com o objetivo de tornar a anatomia compatível com o padrão masculino ou feminino.

Essas cirurgias podem incluir retirada de órgãos (como no caso de Zieselman), vaginoplastia, redução do clitóris e outros procedimentos. Muitas vezes são feitas nos primeiros meses de vida e, segundo médicos, podem evitar que essas crianças sofram problemas psicológicos mais tarde por terem aparência diferente de colegas e amigos.

O que diz quem defende adiamento de cirurgias

Ativistas como Zieselman argumentam que, muitas vezes, essas cirurgias não são realmente necessárias por motivos médicos e têm apenas objetivos estéticos. Também afirmam que não há evidências suficientes de que, se não forem operadas quando crianças, pessoas intersexuais sofrerão problemas psicológicos no futuro.

Eles ressaltam que seu objetivo não é proibir completamente cirurgias, mas sim garantir que, quando não for uma emergência, o procedimento seja adiado até que a criança tenha idade suficiente para consentir. Dizem ainda que operações sem necessidade médica podem resultar em problemas físicos e psicológicos no futuro e seriam uma violação dos direitos humanos das crianças, que deveriam ter o direito de decidir sobre o próprio corpo.

Em relatório de 2017, a organização de defesa dos direitos humanos Human Rights Watch disse que essas cirurgias podem levar a problemas como incontinência urinária, perda de sensação e função sexual, trauma psicológico e transtorno de estresse pós-traumático, e necessidade de terapia de reposição hormonal pelo resto da vida. Outro risco seria o de modificar os genitais da criança para serem mais compatíveis com aparência masculina ou feminina e, quando crescer, ela não se identificar com aquele gênero.

Vários outros grupos, como a organização União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU, na sigla em inglês), a Academia Americana de Médicos de Família, a Anistia Internacional, as Nações Unidas e a Organização Mundial da Saúde já se manifestaram contra cirurgias clinicamente desnecessárias em crianças intersexuais.

Em resposta ao relatório da Human Rights Watch, a Academia Americana de Pediatria disse que há “necessidade urgente de novas pesquisas sobre os resultados de tratamentos e as melhores maneiras de oferecer apoio às crianças e suas famílias” e que “é importante que equipe médica e pais tenham diálogo aberto e transparente, para que os pais possam compreender completamente a condição de seu filho e os riscos e benefícios de qualquer tratamento proposto, inclusive alternativas, como adiar a cirurgia”.

A reação a projetos de lei sobre o tema

O tema ganhou atenção neste mês, com um projeto de lei na Califórnia que proibia médicos de operar crianças intersexuais menores de seis anos, a não ser em casos em que o Conselho de Medicina do estado considerasse clinicamente necessários.

A proposta era apoiada pelo InterACT, a ACLU e outros grupos, e, durante debates, os parlamentares ouviram depoimentos de pessoas intersexuais que relataram problemas causados pelas cirurgias a que foram submetidas quando crianças. Mas outros adultos, que se consideram felizes por terem tido acesso a esse tipo de cirurgia na infância, também deram seus depoimentos explicando porque eram contra a proposta.

O projeto enfrentou forte resistência de várias organizações médicas, entre elas a Associação Médica da Califórnia. Entre as preocupações estão a de que leis do tipo podem limitar a capacidade dos médicos de tratarem seus pacientes, tirar dos pais o poder de tomar decisões médicas pelos filhos pequenos e abrir as portas para intrusão do governo em uma decisão íntima, que costuma ser tomada em conjunto por especialistas e pais.

O projeto na Califórnia não avançou, mas seu autor, o senador estadual democrata Scott Wiener, afirmou que não vai desistir. “Assim como em muitas (outras) lutas por direitos civis, às vezes são necessárias várias tentativas até obter êxito”, disse Wiener.

Propostas semelhantes já haviam sido apresentadas em anos anteriores na Califórnia e, em 2018, o Senado estadual havia aprovado uma resolução que condenava cirurgias “clinicamente desnecessárias”. Projetos do tipo também já foram apresentados em pelo menos outros cinco estados, mas nenhum foi adiante.

Em Nova York, o senador estadual democrata Brad Hoylman anunciou, no fim do ano passado, que vai propor uma lei para proibir cirurgias medicamente desnecessárias em crianças antes que estas tenham capacidade de consentir. “Especialistas estimam que haja mais de 140 mil nova-iorquinos com características intersexuais. Eles merecem ter autonomia sobre seus corpos”, disse Hoylman ao anunciar sua intenção.

Em nota sobre propostas legislativas do tipo, a Societies for Pediatric Urology (SPU), que reúne urologistas pediátricos, ressaltou que, em situações complexas como as que envolvem bebês intersexuais, cada caso deve ser analisado individualmente, e uma equipe multidisciplinar (que inclui urologistas pediátricos, psicólogos, psiquiatras, endocrinologistas, assistentes sociais e outros profissionais) se reúne com os pais para explicar os riscos, benefícios e alternativas, para que possam tomar a melhor decisão.

“A comunidade médica não está se posicionando a favor nem contra a opção cirúrgica. No entanto, deixar apenas uma opção disponível e negar as outras não é do melhor interesse do paciente, especialmente em condições complexas”, diz a nota.

Alguns ativistas afirmam que há casos em que pais de crianças intersexuais se sentem pressionados para aceitar a cirurgia. Mas médicos ressaltam que, dependendo a situação, os próprios especialistas recomendam que os pais esperem até que a criança fique mais velha para decidir se devem operar ou não.

O que dizem pacientes satisfeitos com a cirurgia

De acordo com a SPU, uma proibição geral, como a das propostas legislativas, poderia resultar em falta de acesso à cirurgia em casos erroneamente classificados como “clinicamente desnecessários” e até para crianças que não são intersexuais, mas que podem acabar “inadvertidamente” enquadradas nessa categoria.

Entre essas crianças podem estar as portadoras de Hiperplasia Adrenal Congênita (CAH, na sigla em inglês), alteração genética que pode ser fatal, em que há aumento da produção de testosterona e surgimento de características secundárias masculinas. Mulheres com CAH têm genética feminina e órgãos reprodutivos femininos, mas podem nascer com genitália de aparência ambígua. Muitas rejeitam o termo “intersexual”, que muitas vezes é usado para se referir a elas.

“Nós acreditamos que limitar o acesso inicial a cirurgias pode gerar resultados negativos para os integrantes de nossa comunidade, por isso somos contra qualquer legislação que proíba de maneira ampla as opções de cirurgia, já que essas decisões devem ser feitas entre especialistas em saúde e famílias, e não por legisladores”, diz a Cares Foundation, organização de apoio a portadores de CAH.

Pacientes com CAH relataram em depoimento por escrito à BBC News Brasil como o acesso à cirurgia quando eram crianças foi benéfico e disseram temer que uma proibição prejudique portadores da doença.

Lesley Holroyd, de 62 anos, conta que é uma mulher heterossexual que nasceu com órgãos reprodutivos femininos, mas genitália externa atípica. Ela foi submetida a uma cirurgia para corrigir os genitais quando tinha quatro anos de idade, o que permitiu que sua genitália tivesse aparência compatível com seu gênero.

“Graças a isso não tenho lembranças horríveis ou dolorosas”, observa. “Sou grata por essa decisão (tomada por seus familiares e médicos), que me permitiu aproveitar minha infância como qualquer outra criança, sem constrangimento.”

Holroyd acredita que teria sofrido danos psicológicos se não tivesse tido acesso à cirurgia quando criança e tivesse sido obrigada a esperar até a adolescência para ser operada. Ela ressalta que a CAH é uma condição “muito mais complexa do que genitália atípica” e que “necessita de decisões médicas individualizadas”.

“Minha preocupação é qual seria a idade apropriada para uma criança decidir o que é melhor para ela pelo resto de sua vida. Eu não conseguiria ter tomado esse tipo de decisão nem mesmo no início da vida adulta, fico feliz que (a decisão) tenha sido tomada por mim quando eu era criança”, salienta.

Em meio ao debate, pais de crianças que nascem com características intersexuais convivem com a preocupação de que qualquer decisão — de operar ou não — possa trazer riscos, já que, apesar de alguns estudos, também não há evidências conclusivas sobre como adiar a cirurgia afeta os pacientes no futuro.