fonte: Folha de SP

por

Rodrigo Antonio Brandão Neto

Médico supervisor de Emergências Clínicas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP

Irineu Tadeu Velasco

Professor titular de Emergências Clínicas da FMUSP, coordenador do projeto Fapesp “Marcadores de diagnóstico e prognóstico em pacientes graves atendidos em serviço de emergência”

A pandemia do vírus SARS-CoV-2 representa o maior desafio de toda uma geração de profissionais da área da saúde. O Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP é um dos maiores campos de enfrentamento da crise no país.

Nossa equipe na emergência do HC tinha 28 médicos antes da pandemia. Por pertencerem ao grupo etário de maior de risco, quatro se afastaram —entre eles um de nós, o dr. Irineu Velasco, que permanece online na coordenação dos trabalhos. Por causa do tremendo aumento de atendimentos, contratamos 17 médicos. E todos tivemos que aumentar o ritmo de trabalho —alguns permanecendo até 60 horas semanais na emergência.

Antes da pandemia, o HC atendia de 20 a 30 casos de baixa complexidade por dia. Hoje quase todos são complexos. Estamos recebendo 60 casos graves por dia.

Um caso emblemático foi o de um paciente de 64 anos obeso, que evoluiu com piora rápida do padrão respiratório e foi para a sala de emergência, reservada aos casos de maior gravidade para intubação. Naquele momento, parte da equipe transportava outro paciente à UTI. Mesmo com a equipe reduzida, tivemos que realizar uma intubação.

Nosso material de proteção inclui um face shield. Como os dois médicos usam óculos, durante o procedimento os óculos embaçaram com a combinação de máscara e face shield. Assim, não tivemos sucesso. Na segunda tentativa, um dos médicos retirou deliberadamente a proteção facial para enxergar melhor, e conseguiu realizar o procedimento.

Noutra ocasião, chegaram quatro pacientes intubados de uma só vez. Não tínhamos espaço nem ventiladores para receber todos ao mesmo tempo. Tivemos que deslocar alguns pacientes em ambulâncias para a unidade de cuidados intensivos. No processo de arrumar o local, um dos pacientes perdeu o tubo orotraqueal. A médica da ambulância pediu socorro. Um médico da equipe correu a ajudar e, na pressa, mesmo sem face shield, reintubou o paciente.

Um terceiro caso emblemático se deu com um profissional da saúde pai de gêmeas de poucos meses. Ele havia decidido não se isolar, pois temia perder o emprego. Entrou na emergência em situação grave e foi intubado. Antes do procedimento, disse: “minhas filhas iriam preferir que eu estivesse desempregado do que agora correndo risco de vida.” Ele sobreviveu.

Desde o início da pandemia, três médicos foram afastados da emergência por apresentarem sintomas respiratórios. Dois já voltaram. O terceiro foi aquele que tirou o face shield durante a intubação. Ele já está bem.

Nos primeiros dias, era nítido que alguns médicos tinham receio de entrar na área dos pacientes com Covid —que logo veio a tomar conta de todo o pronto-socorro. Houve momentos que vários colegas partilhavam notícias de colegas médicos em outros países que estavam morrendo. No entanto, em pouco tempo isso parou e tornou-se nítido que o moral da equipe se tornara elevado.

Houve casos nítidos de médicos com exaustão e sintomas de estresse. No nosso grupo de WhatsApp, percebe-se que muitos da equipe passam por um carrossel de emoções, que vão do medo e da preocupação ao desprendimento e à dedicação.

Além da estafa e do estresse, corremos risco contaminação devido à grande exposição ao vírus. Mesmo com a proteção adequada, o contágio é quase inevitável. Todos sabem disso. A esse respeito, quando solicitamos à equipe que aumentasse o horário de trabalho, uma médica teve reação muito negativa. Disse que não podiam obrigá-la, que o hospital esperava que morrêssemos por ele, que era errado.

Explicamos que não iríamos requisitar nada que nós mesmos não estivéssemos fazendo, e que o momento exigia sacrifício. Deixamos em aberto a possibilidade de mudar para o pronto-socorro do Instituto do Coração, onde a chance de infecção é mais baixa. Após alguns dias, aquela médica nos procurou. Disse estar preocupada e rezando pela equipe todos os dias. Disse que entendia que tinha de fazer mais pela equipe e pela situação. No dia seguinte, retornou à emergência, aumentou seus horários e pegou plantões no fim de semana.