fonte: Folha de SP
por Esper Kallás Médico infectologista, professor titular do departamento de moléstias infecciosas e parasitárias da Faculdade de Medicina da USP e pesquisador na mesma universidade.
No último domingo, Hélio Schwartsman trouxe uma interessante provocação em sua coluna na Folha. Questionou a realização de pesquisas com infecção experimental em humanos. Vou elaborar um pouco mais sobre o assunto.
É defensável realizar um estudo para dar um agente infeccioso a uma pessoa saudável? As informações colhidas poderiam ser extremamente valiosas. Poderíamos entender o período de incubação, de multiplicação viral no organismo, os sinais e sintomas que caracterizam a doença e o tempo transcorrido até a melhora e a cura. Mais do que isso, poderíamos testar medicamentos preventivos, tratamentos, vacinas e outras formas de alívio de sintomas.
Antes que o leitor se aborreça com tal proposição, são importantes algumas considerações.
A história tem exemplos deploráveis, incluindo formas deliberadas de uso de agentes infecciosos como armas. Experimentos terríveis foram descritos em campos de concentração, durante a Segunda Guerra Mundial, quando pessoas foram propositalmente infectadas pelo bacilo da tuberculose para que a doença fosse estudada, o que provocou a morte de pelo menos 200 pessoas.
Há também exemplos virtuosos. Um deles, ancorado em observações práticas, serviu de base para o descobrimento das vacinas. Em 1796, Edward Jenner inoculou James Phipps, um garoto de oito anos de idade, com o vírus da varíola bovina, que provocava vesículas na mão de ordenhadeiras. Semelhante, mas menos virulento que o vírus da varíola humana, conseguiu conferir proteção adequada ao garoto, que ficou imune a essa doença, responsável pela morte de 300 a 540 milhões de pessoas, somente no século 20.
Tais experimentos aumentaram numericamente nas últimas décadas, em situações cada vez mais controladas. Já foram feitos estudos com gripe, malária, dengue, cólera e febre tifóide. Em todos, foi escolhido um representante do agente com menor virulência e um grupo de voluntários com baixíssima chance de desenvolver doença grave. As informações obtidas em tais projetos são de grande importância, sugerindo que essa prática deva ser considerada para condições onde há maiores limitações na avaliação de prevenção ou tratamento, como sugerido em documento da Organização Mundial da Saúde.
Em 1996, na Universidade de Rochester, NY, ajudei a realizar um estudo que incluiu 60 jovens voluntários que receberam um vírus da gripe comum. Eles foram hospedados em um hotel da cidade onde metade deles começou a tomar, um dia antes, um novo remédio antiviral que estava em desenvolvimento. No dia seguinte, cada um recebeu instilação nasal de uma solução contendo o vírus. Todos os sintomas foram monitorados e documentados nos dias subsequentes.
Tudo ocorreu sem transtornos. Os que tiveram gripe apresentaram sintomas leves e suportáveis, como febre e tosse, e receberam tratamento sintomático apropriado até a cura. Experimentos como esse foram a base para o uso de um dos antivirais que usamos até hoje, pois a gripe não dispunha de tratamento específico àquela época.
Estamos diante de uma pandemia com grande quantidade de mortos e enorme impacto mundial, sem precedentes nos tempos recentes. O desenvolvimento urgente de novos medicamentos e possíveis vacinas é a única forma de superar tamanha crise, antes que a infecção alcance uma porcentagem ainda maior da população cobrando, dos mais vulneráveis, um alto preço.
Para provar que um medicamento funciona, é necessária a inclusão de centenas de pacientes. Para uma vacina, um estudo pode requerer milhares. Podemos esperar tanto tempo para percorrer tais etapas? O enfrentamento de uma pandemia como a da Covid-19 requer soluções rápidas.
Várias estratégias podem minimizar os riscos: escolher voluntários entre 18 e 30 anos, sem outros problemas de saúde, que residam em áreas onde há circulação do novo coronavírus (esse grupo apresenta taxa de complicações e risco de morte pela doença extremamente menores que a população em geral); recebê-los em um hospital durante o período de infecção experimental, minimizando a chance de transmissão para outros, além de oferecer todo o suporte disponível.
Faria, aqui, uma ressalva ao comentário de Hélio Schwartsman, no uso do termo “cobaia”.
A pesquisa clínica no Brasil é regida por normas rigorosas, monitoradas pela Conep (Comissão Nacional de Ética em Pesquisa) e pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), que protege principalmente o participante, garantindo sua total liberdade em participar, ao mesmo tempo zelando pela proteção do voluntário. Aliás, nunca é demais enfatizar o quanto somos gratos aos voluntários de estudos de pesquisa. São contribuições inestimáveis para toda a coletividade.
Estudos que utilizem infecções experimentais pelo novo coronavírus podem apressar em vários meses o desenvolvimento de novos tratamentos e vacinas. Algo que pode salvar a vida de centenas de milhares de pessoas.