fonte: O Globo

O SUS chegou à pandemia enfraquecido. É esta a avaliação de especialistas sobre o sistema público de saúde do qual dependem 70% dos brasileiros.

Os recursos cada vez mais escassos e a falta de comando federal durante a pandemia são apontados como as principais razões para o enfraquecimento do sistema que, em crises de saúde passadas, como a da zika ou da Aids, criou respostas rápidas e robustas.

Desde 2016, no entanto, o SUS vive o que o sanitarista Adriano Massuda, professor da FGV-SP, chama de “agravamento do subfinanciamento histórico”. Naquele ano, aprovou-se a PEC do Teto dos Gastos e, desde então, o governo não tem atingido nem mesmo o percentual mínimo destinado à saúde, incluindo financiamento do SUS, dividido com estados e municípios.

Se estados devem contribuir com percentual mínimo de 12%, e municípios, 15%, cabe ao governo federal destinar 15% de sua receita líquida para a Saúde. Em 2019, no entanto, o governo repassou 13% da receita — o que, calculam especialistas, representa perda de cerca de R$ 20 bilhões.

Em nota, o Ministério da Saúde afirmou que o orçamento vem crescendo de 2015 para 2019, mas não mencionou o fato de não ter atingido o mínimo repassado à Saúde.

A pasta informou que, entre 2015 e 2019, os recursos executados cresceram 24%, passando de R$ 110,2 bilhões para R$ 136,4 bilhões. Lembrou ainda que houve uma verba emergencial para a pandemia, de R$ 39,3 bilhões — dos quais apenas R$ 11,9 bilhões foram pagos até o momento.

— Os municípios, principais responsáveis por remunerar profissionais de saúde e garantir o funcionamento dos postos, acabam pagando a conta. Muitos têm gastos de 25% de sua arrecadação própria com a Saúde — explica Massuda.

Para ele, por causa do subfinanciamento e de dificuldades de gestão do governo federal, “o SUS de 2020 é mais fraco que o de 2015”.

— A partir de 2016, houve uma mudança muito grande de ministros, que não eram comprometidos com o fortalecimento do SUS. Então, além do problema do financiamento, começa a ter um problema de governança — avalia. — Na pandemia, a situação se agravou. O ministério não assumiu o papel de agente principal na coordenação da resposta nem na compra de insumos para o país.

Apesar do subfinanciamento histórico, Massuda lembra que a pasta “tinha experiência na condução de emergências de saúde pública”. A Secretaria de Vigilância em Saúde, ressalta, “tinha uma equipe muito competente”.

— O pós-pandemia vai exigir um aperfeiçoamento dos sistemas de saúde em nível global. Mas já é possível, sim, ainda que preliminarmente e sujeito a possíveis imprecisões, fazer uma comparação com os EUA, em relação à diferença que faz não ter nada e ter um SUS. Apesar das precárias condições de sua estrutura e coordenação, é preciso destacar o houve de positivo.

Criação de leitos

O sanitarista se refere, por exemplo, ao número de leitos hospitalares do SUS. Até março, segundo ele, eram cerca de 15 mil leitos de UTI. Durante a pandemia, foram criadas cerca de 8 mil vagas — “uma ampliação importante para aumentar a capacidade de absorção dos pacientes graves nas cidades”, na avaliação de Massuda.

— Isso aconteceu porque existe o SUS. Apesar de todos os problemas, o Brasil conseguiu ter uma resposta diferente da dos EUA. Lá, eles não dispunham de um sistema público que pudesse se organizar para dar uma resposta.

Para Mário Scheffer, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), é importante lembrar que “o SUS é heterogêneo, uma característica que está em sua própria origem”.

Criado em 1988 para universalizar a saúde no país, o sistema tem financiamento e gestão descentralizados.

— Não dá para comparar, por exemplo, o SUS de São Paulo com o do Rio de Janeiro — explica Scheffer. — Mas, obviamente, há diretrizes que são nacionais e, num momento de pandemia e sem comando nacional claro, a descentralização acabou também por gerar respostas ainda mais heterogêneas à crise.

Ele lembra que o sistema brasileiro tem um histórico de respostas eficientes a epidemias, seja pela atuação das instituições de pesquisa “muito fortes”, seja pela eficiência da vigilância epidemiológica e do programa de vacinação.

— Foi o SUS, por exemplo, que liderou há cinco anos a descoberta da relação do vírus zika com o aumento de casos de microcefalia. Também foi responsável pela erradicação da rubéola em 2015 — enumera Scheffer, para quem “a resposta da Aids talvez seja a mais eloquente e emblemática”.

— A Aids chegou praticamente junto com o SUS, na década de 1980. Quando se decidiu desde o primeiro momento que haveria acesso universal aos antirretrovirais, foi por causa do SUS.

Scheffer lista três trunfos do sistema universal de saúde, cruciais ontem e hoje:

— Em primeiro lugar, as instituições públicas de pesquisa. Em segundo, a capacidade de produção de medicamentos genéricos, que poderá fazer diferença na produção de uma vacina (contra o coronavírus). Por fim, algo que não tem agora: o comando federal.

Para ele, “as diretrizes e o consenso terapêutico” que se criaram para enfrentar a crise de então fazem falta hoje:

— Sem o SUS, não existiria a resposta à Aids. Isso não está se reproduzindo agora, e uma questão importante é a falta de comando nacional, que se reflete na fragmentação de medidas. Não existe SUS sem Ministério da Saúde. Então o SUS está desgovernado.