fonte: BBC Brasil
A história parece se repetir: um confronto aberto entre aqueles que defendem os direitos de propriedade intelectual em medicamentos e aqueles que exigem acesso a medicamentos mais baratos para salvar vidas.
Já aconteceu em 1998, quando a África foi gravemente atingida pela epidemia de HIV e vários governos do continente pediam a retirada de patentes de empresas farmacêuticas para obter os medicamentos que poderiam prevenir a AIDS e evitar mortes.
Os países ricos, onde estão localizadas as empresas farmacêuticas que produzem esses medicamentos, recusaram.
Disponíveis nos países desenvolvidos desde 1996, os medicamentos antirretrovirais caros levaram 10 anos para chegar aos países de baixa renda a um preço acessível para todos. Em 2007, durante o governo de Luís Inácio Lula da Silva, o Brasil declarou que a patente do efavirenz, um remédio utilizado no tratamento contra a Aids, era de interesse público e que iria licenciá-la compulsoriamente. O governo alegava que o valor cobrado pelo laboratório americano Merck Sharp & Dohme era maior do que o praticado em outros países, aumentando os gastos do SUS (Sistema Único de Saúde).
Agora, com a pandemia da Covid-19, um debate parecido volta à tona.
Vários países de baixa e média renda estão pedindo à OMC (Organização Mundial do Comércio) —o órgão que rege os acordos de direitos de propriedade intelectual relacionados ao comércio— que estabeleça uma suspensão desses direitos para que se possa produzir de forma acessível vacinas contra o coronavírus
Países ricos, incluindo Reino Unido, Estados Unidos, Suíça e nações europeias, se opõem à proposta, apresentada pela África do Sul e Índia e apoiada por dezenas de países em desenvolvimento.
O Brasil não defende essa proposta.
O argumento do grupo de países desenvolvidos é que essas patentes seriam necessárias para incentivar a pesquisa e o desenvolvimento de medicamentos.
De todo modo, muitos especialistas acreditam que licenciar as vacinas não resolveria a escassez de doses no Brasil nem em outros países em desenvolvimento, pelo menos não a curto prazo. Isso ocorreria por defasagem tecnológica e de insumos, muitos deles importados da China e da Índia.
ABISMO ENTRE PAÍSES RICOS E POBRES
Até agora, apenas alguns países de alta renda parecem ter amplo acesso a vacinas.
A OMS (Organização Mundial da Saúde) disse no início de fevereiro que cerca de 200 milhões de vacinas contra Covid-19 foram administradas. Mas 75% dessas vacinas, afirma a organização, foram administradas em apenas 10 países ricos.
Gavin Yamey, professor de Saúde Global e Políticas Públicas da Universidade Duke, nos Estados Unidos, diz que em quase 130 países, onde vivem mais de 2,5 bilhões de pessoas, praticamente nenhuma vacina foi recebida.
“Tem sido extremamente deprimente ver como as nações ricas esvaziaram as prateleiras. As vacinas têm sido pegas basicamente dizendo ‘eu primeiro’ e ‘só eu’ e isso não é apenas muito injusto como também uma atitude de saúde pública terrível”, disse o especialista à BBC.
De fato, os especialistas garantem que, para interromper essa pandemia global, é necessária uma resposta global, porque a crise não pode ser encerrada se apenas alguns países tiverem sua população vacinada em massa.
É por isso que propostas têm sido feitas para que as empresas farmacêuticas suspendam temporariamente as patentes de suas vacinas e compartilhem seus conhecimentos tecnológicos, a fim de acabar com o que os especialistas chamam de “apartheid de vacinas”.
O QUE SÃO AS PATENTES?
Patentes protegem a propriedade intelectual de um produto para que não possa ser copiado. Na indústria farmacêutica, quando um medicamento é descoberto e desenvolvido, a empresa patenteia sua descoberta para que ninguém mais possa fabricá-la sem sua autorização.
Isso permite controlar o preço e a produção, o que, por sua vez, pode levar em alguns casos a preços altos e medicamentos inacessíveis aos mais pobres.
Uma das propostas para acelerar a produção de vacinas, idealizada pela OMS, é o chamado C-TAP (Acesso Conjunto a Tecnologias contra a Covid-19, em tradução livre).
Este é um mecanismo global para compartilhar voluntariamente conhecimento, dados e propriedade intelectual de tecnologias em saúde para a luta contra a doença.
O C-Tap foi criado pela OMS em junho de 2020 e quase 40 países são signatários, mas Raquel González, chefe de relações externas da organização Médicos Sem Fronteiras, explica que nenhuma tecnologia foi compartilhada até agora.
“Foi uma iniciativa que indiretamente permitiria um aumento da produção, principalmente nos países em desenvolvimento, mas não teve resposta da indústria farmacêutica, que neste caso é a detentora das patentes”, disse González à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC.
A outra forma de fazer com que as empresas farmacêuticas compartilhem suas tecnologias é aquela apresentada pela África do Sul e pela Índia à Organização Mundial do Comércio para suspender os direitos de propriedade intelectual das vacinas durante a pandemia.
O objetivo, explica González, é facilitar a transferência de tecnologia e conhecimento científico para que os países em desenvolvimento possam aumentar a produção de vacinas e torná-las acessíveis às suas populações.
“O que a Índia e a África do Sul estão argumentando é que laboratórios farmacêuticos e fábricas poderiam estar em funcionamento se o conhecimento fosse compartilhado. Se o conhecimento não for compartilhado agora, as únicas empresas que podem fazer a vacina são as que têm o patente”, diz.
Mas os países mais ricos se opõem à proposta, argumentando que a suspensão das patentes obstruirá a inovação científica ao desencorajar investidores privados de se envolverem nesse segmento.
Eles afirmam ainda que os regulamentos atuais que permitem que os fabricantes de medicamentos estabeleçam acordos bilaterais com produtores de medicamentos genéricos e “flexíveis o suficiente quando se trata de lidar com uma emergência de saúde pública”.
“A propriedade intelectual é uma parte fundamental do nosso setor”, disse Pascal Soriot, CEO da empresa AstraZeneca, em maio, durante entrevista coletiva para discutir a criação da C-Tap. “E se você não protege a propriedade intelectual, essencialmente não há incentivo para ninguém inovar.”
Os críticos apontam, porém, que as farmacêuticas têm recebido bilhões de recursos públicos, principalmente dos EUA e da Europa, para o desenvolvimento de vacinas cobiçadas, por isso devem compartilhar sua tecnologia.
Um relatório publicado em fevereiro na revista médica The Lancet mostra que os produtores de vacinas receberam cerca de US$ 10 bilhões (quase R$ 56 bilhões) de fundos públicos ou sem fins lucrativos para financiar suas vacinas.
E o número, diz o relatório, talvez seja apenas uma parte do montante, já que muitos dos dados sobre esses projetos não são públicos.
Há sinais de que as cinco maiores empresas farmacêuticas receberam cada uma entre R$ 5 bilhões e R$ 12 bilhões.
E em troca desse financiamento, diz o relatório, os países mais ricos conseguiram fechar contratos para receber doses suficientes para vacinar toda a sua população antes.
No entanto, a indústria farmacêutica ressalta que não são as patentes que estão causando a escassez de vacinas em países de baixa e média renda.
“Os direitos de propriedade intelectual não são o problema”, diz Thomas Cueni, diretor da IFPMA (Federação Internacional de Associações e Produtores Farmacêuticos), que representa os principais produtores de vacinas.
“Os gargalos [na produção de vacinas] são a capacidade, a escassez de matéria-prima, a escassez de ingredientes. E tem a ver com o conhecimento”, declarou durante conferência organizada há poucos dias pela OMS sobre a distribuição de vacinas.
De acordo com a IFPMA, “o aumento sem precedentes na fabricação de vacinas, de zero a bilhões de doses em tempo recorde, levou a uma escassez que afetou toda a cadeia de abastecimento da vacina”.
BARREIRAS TÉCNICAS E LEGAIS
Especialistas apontam que, mesmo que os países cheguem a um acordo, uma suspensão temporária de patentes não seria suficiente para acelerar o acesso global às vacinas.
“Não acho que a suspensão de patentes seja a resposta”, disse à BBC Rory Horner, professor do Instituto de Desenvolvimento Global da Universidade de Manchester, na Inglaterra, que pesquisa a indústria farmacêutica na Índia e na África Subsaariana.
“As vacinas são produtos muito mais complexos de serem fabricados do que outros medicamentos”, explica. “Na década de 1980, antes que as proteções de patente estivessem em vigor, os laboratórios podiam copiar um medicamento e vendê-lo por uma fração do preço na Índia. Era um processo relativamente simples.”
“Mas para produzir uma vacina é preciso a colaboração da empresa que a inventou e informações sobre os diversos processos e etapas que envolvem a fabricação do produto”, explica o especialista.
Isso se aplica principalmente à produção das novas vacinas “complexas” de RNA mensageiro aprovadas que estão sendo produzidas pela Pfizer/BioNTech e pela Moderna.
Para que os laboratórios em países de baixa e média renda produzam vacinas cobiçadas, eles precisam de conhecimento técnico, que muitas vezes é mantido como segredos comerciais de empresas farmacêuticas, e acesso a informações de segurança que muitas vezes são protegidas pela empresa que detém a patente.
“Estamos falando de barreiras técnicas, além das barreiras legais, para aumentar a produção de vacinas”, diz Horner.
Mas autoridades e especialistas que defendem a suspensão das patentes afirmam que há países de baixa e média renda com laboratórios e empresas capazes de produzir essas vacinas, a exemplo da Índia, do Paquistão e do Brasil.
“Digamos que se tivermos a receita de como fazer uma vacina, logicamente vai demorar um pouco até que uma fábrica de produção seja feita e a matéria-prima, obtida. Se a tecnologia e o conhecimento forem compartilhados, talvez em cinco meses teríamos 15 unidades de produção”, estima Raquel González, do Médico Sem Fronteiras.
A transferência de tecnologia levaria tempo, e tempo é algo que ninguém tem numa pandemia como essa.
ACORDOS BILATERAIS OU COVAX?
Alguns especialistas acreditam que uma solução seja estabelecer mais acordos bilaterais —como aqueles que a Novavax e a AstraZeneca-Oxford fez com o Instituto Serum da Índia e a Johnson & Johnson com Aspen Pharmacare na África do Sul— para produzir suas vacinas e distribuí-las para países de renda baixa e média.
No caso do Brasil, por exemplo, a Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) firmou um contrato de transferência de tecnologia com a AstraZeneca-Oxford e passará a produzir a matéria-prima nos próximos meses, o que garantirá independência de importações.
Horner, da Universidade de Manchester, acredita que é preciso mais do que apenas acordos bilaterais para acelerar o acesso às vacinas contra Covid-19. “Em termos de produção, esses acordos ajudariam, mas também se trata de melhorar aquisição, compra e distribuição de vacinas”, diz o especialista à BBC News Mundo.
“O fato de as vacinas serem distribuídas de forma tão desigual não é resultado da capacidade de fabricação no mundo, mas sim de como alguns países foram capazes de comprar e acessar essas vacinas primeiro.”
Horner acredita que a solução está no Covax, o mecanismo criado pela OMS em 2020 para acesso global a vacinas e melhoria da distribuição em países de baixa renda.
Mas o projeto tem enfrentado dificuldades porque, embora os países desenvolvidos tenham doado dinheiro para a Covax, eles também compraram todas as doses de vacinas e o mecanismo não conseguiu cumprir sua meta de distribuir vacinas para países de baixa renda.
“Idealmente, a Covax não teria apenas o dinheiro dos países ricos, mas também as doses, direitos e acesso prioritário às doses que os países ricos acumularam”, diz o especialista da Universidade de Manchester.
“Covax é um programa extraordinário que teve que evoluir em um contexto muito difícil, então se conseguir avançar será algo realmente benéfico”, acrescenta.
Gavin Yamey, da Universidade Duke, concorda: “Esta é uma pandemia global e precisamos de uma resposta global que inclua a vacinação em todo o planeta e a Covax é um mecanismo essencial para isso”.
“Mas temos que fazer muito mais para resolver esse apartheid de vacina.”