fonte: Folha de SP

O projeto de lei das licenças compulsórias para remédios e vacinas contra Covid, que foi pautado para votação no Senado na quinta-feira (29), deve funcionar como instrumento de pressão para forçar as farmacêuticas a negociarem redução de preços e transferência de tecnologia, para evitar a quebra de patentes.

Essa é a ideia do relator do projeto, senador Nelsinho Trad (PSD-MS). Mesmo que o país não consiga fabricar vacinas e remédios a curto prazo, a licença compulsória permitirá que o país importe genéricos. Bangladesh, por exemplo, fez licença compulsória do remdesivir, medicamento indicado para pacientes hospitalizados com Covid, conseguiu fabricar e vende a droga por um quinto do preço do original.

Trad afirma que o texto prevê negociação “civilizada” com as farmacêuticas, e que não teme retaliações. “Se elas não entenderem, nós vamos pagar para ver.” O substitutivo é baseado em dois PLs, um do senador Paulo Paim (PT-RS), e outro dos senadores Katia Abreu (PP-TO), Otto Alencar (PSD-BA) e Esperidião Amin (PP-SC).

O substitutivo prevê licença compulsória do remdesivir, um dos únicos medicamentos aprovados pela Anvisa para tratamento de Covid. Nos EUA, o tratamento sai por US$ 520 (R$ 2.860) a ampola, ou cerca de US$ 3.120 (R$ 17,1 mil) o tratamento. A nova lei seria uma maneira de pressionar a fabricante a reduzir o preço que será praticado no Brasil (ainda não definido)?
A partir do momento em que a lei for aprovada, o governo terá um instrumento para poder abrir um canal de negociação civilizada com quem detém a propriedade intelectual. Chama para a mesa e diz: o país está precisando desse medicamento, estamos aqui em uma situação de emergência, e precisamos que vocês baixem o preço, ou, então, nós vamos interferir na propriedade intelectual e passar a replicar esse remédio no Brasil.

Foi o que fez o então ministro José Serra fez com o nelfinavir, um dos medicamentos contra HIV: ameaçou fazer licença compulsória e o laboratório acabou reduzindo em 40% o preço.
Exatamente. Em função disso, nós ouvimos a assessoria do senador José Serra, e ele se manifestou favoravelmente ao substitutivo.

Farmacêuticas de Bangladesh estão fabricando a versão genérica do remdesivir e vendendo por US$ 65 (R$ 357) a ampola, ou US$ 390 (R$ 2.145) o tratamento todo. O país, por ser parte do grupo das nações menos desenvolvidas (LDC), é autorizado a fabricar remédios patenteados sem autorização, e exportar para outros LDC ou países que tenham licença compulsória do medicamento. A lei permitiria ao Brasil comprar genéricos do remdesivir de Bangladesh?
Permitiria, sim. Abre uma possibilidade saudável de tentar fazer frente à pandemia com mais opções de compra de remédios.

A lei prevê que, após decretação de estado de calamidade ou emergência, o Executivo tem 30 dias para apresentar uma lista de patentes cujas licenças compulsórias seriam necessárias. Isso dá mais agilidade?Antes, não existia esse prazo. Estabelecemos esse prazo justamente para que acenda a luz amarela no Ministério da Saúde, para listar os produtos que o Brasil comprovadamente tem a capacidade de desenvolver, e garantir que o processo de licença compulsória seja realizado de forma ágil e responsável.

Sabemos que o governo federal é contra o licenciamento compulsório. O ministério pode simplesmente publicar uma lista sem nenhum medicamento, dizendo, por exemplo, que o Brasil não conseguiria fazer engenharia reversa [analisar um medicamento pronto e “desmontá-lo” para descobrir como foi feito e reproduzi-lo] de nenhum deles?
Achamos um caminho alternativo que faz com que recaia sobre os ombros do Executivo o ônus ou o bônus das ações. E nós estamos tentando acrescentar na lei algum outro instrumento para por mais pressão no Executivo, para que ele produza a lista. Estamos tentando achar um caminho para responsabilizar o Executivo. Nós, atravessando uma pandemia dessas, o número de mortos que temos, é absurdo se não houver iniciativa do Executivo. Se não fizerem nada, o ônus vai cair ainda mais nas costas dele.

Mas empresas e governo argumentam que não adiantaria quebrar patente, porque o Brasil não teria expertise para fabricar os remédios aqui a curto ou médio prazo…
Mas vou confrontar, se o Ministério da Saúde fala isso, o Butantane e a Fiocruz vão ficar quietos? O Legislativo tem como estimular os laboratórios a dizerem se conseguem ou não. Precisamos falar com Butantan, Farmanguinhos, Vital Brasil, Evandro Chagas. A gente era reconhecido na comunidade internacional como detentores de tecnologia de ponta, foi assim no coquetel antirretrovirais no caso do HIV, vacinas…Mas, de 30 anos para cá, isso foi atrofiando a ponto de irmos de pires na mão implorar por insumos para que possamos envasar as vacinas aqui. Falta uma política de estado para investimento.

As organizações da indústria farmacêutica afirmam que, caso o Brasil use a licença compulsória, isso pode afetar a venda de medicamentos no país, empresas podem preferir vender em outros mercados… Não temem esse tipo de retaliação?
A indústria usa esses argumentos. O projeto atual traz o pessoal para dentro de uma sala de reuniões para eles se conscientizarem sobre o que estamos passando e mostrar que, com essa nova lei, nós teremos um sistema de negociação responsável, com pagamento de royalties. Se eles não entenderem, continuarem com essas considerações de mercado, e sabemos que eles agem assim, nós vamos pagar para ver. Agora, tem 3.000, 4.000 mortos por dia no Brasil, e essas farmacêuticas estão lucrando do jeito que estão. A pressão sempre ocorre, mas, a partir do momento em que damos uma possibilidade de negociação civilizada, se recusam, vai ser uma questão de repercussão internacional.

O governo afirma que, já pelo acordo Trips, o Brasil pode pedir licença compulsória em emergência de saúde pública e não há necessidade de legislação para isso. O que o senhor acha?
A lei dá mais agilidade nessa questão.

O senhor calcula que terá os votos para aprovar o projeto no Senado?
Fico feliz, porque tem alguns senadores que são referência, e estão favoráveis, pedindo para o [senador Rodrigo] Pacheco pautar logo. Acho que, com esse texto, conseguimos apoio também dos governistas.


PRINCIPAIS PONTOS DA LEI

  • Permite licenças compulsórias quando o Executivo declarar emergência nacional ou interesse público, ou o Congresso decretar calamidade pública.
  • Uma vez declarado, o Executivo deverá publicar em até 30 dias a lista de patentes cujas licenças compulsórias seriam necessárias. Órgãos públicos, instituições de ensino e pesquisa e entidades da sociedade civil deverão ser consultadas no processo de elaboração da lista.
  • O titular da patente fica obrigado a transmitir as informações necessárias à efetiva reprodução do objeto protegido pela patente.
  • Prevê negociação entre as partes para evitar licença compulsória: patentes poderão ser excluídas da lista caso o Executivo considerar que seus titulares assumiram compromissos objetivos de atender às necessidades de emergência nacional ou de interesse público por intermédio de sua exploração direta no país, licenciamento voluntário ou importações por valores compatíveis com os preços praticados no mercado internacional e as necessidades da emergência nacional.
  • O titular da patente objeto de licença compulsória somente será remunerado caso a patente venha a ser suspensa.
  • Na pandemia, estabelece que serão incluídas na lista de licença compulsória as vacinas contra o vírus Sars-CoV-2 e suas variantes (entenda o que são as variantes), bem como seus ingredientes ativos e quaisquer insumos ou invenções necessários à sua produção; e o medicamento remdesivir.