fonte: O Globo

O sistema de saúde deu um nó no ano passado. No início da pandemia, com o receio de colapso e o aumento descontrolado de infecções, hospitais e clínicas voltaram todas as atenções à Covid-19. A população foi aconselhada a ficar em casa e os atendimentos de outras questões médicas acabaram desencorajados pela preocupação com a contaminação. A crise sanitária, entretanto, foi se estendendo, e logo chegou-se à conclusão de que o esquema traria prejuízos. Em meio a suspensões (algumas ainda em vigor) e retomadas de serviços, o sistema se adaptou e separou a assistência aos pacientes com coronavírus daqueles com outras doenças. Entretanto, não foi suficiente.

Os exames e cirurgias eletivos, aqueles que não são considerados de urgência — a exemplo de operações de catarata, hérnia ou retirada de vesícula, entre muitos outros — acabaram negligenciados. Trata-se de um fenômeno não apenas nacional, mas global.

Para se ter uma ideia, de janeiro a maio de 2019, o Sistema Único de Saúde (SUS) realizou 811.808 cirurgias eletivas. Em 2020, foram 587.248 no mesmo período. Neste ano, houve 432.784 registros, uma queda de 46% em relação a 2019. Vale ressaltar que eletivo não é sinônimo de opcional. Ou seja, quando chegar a vez dessa turma realizar seus procedimentos, pode estar em situação bem mais agravada de saúde.

Diagnóstico tardio

O empresário Rafael Vitalli, de 34 anos, começou a sentir dores fortes no pé direito em março do ano passado, bem no início da quarentena. Os exames básicos não foram capazes de identificar a causa do incômodo. O paciente buscou, então, testes mais complexos, porém teve dificuldades de marcá-los.

— Como não se sabia se meu caso era urgente ou não, sempre foi muito custoso fazer os agendamentos. Eu acabava sendo passado para trás — conta.

O diagnóstico final veio só no fim de setembro: um tumor raro no pé. No Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, realizou sessões de quimioterapia e duas cirurgias.

— Se eu tivesse começado os procedimentos antes, o tumor não teria crescido nesse período, eu faria uma cirurgia menos invasiva, sem perder tanto os movimentos.

Um estudo do Sírio-Libanês, inclusive, mostrou que 50% dos pacientes com câncer no mundo atrasaram seus tratamentos por conta do coronavírus. Mais de 60% dos médicos reportaram atrasos — 90% se referiam a radioterapia, 20% a quimioterapia e 76% a cirurgias. Foram ainda 77% menos diagnósticos da doença, para a qual o tempo faz toda a diferença.

Com a expansão da campanha de vacinação e a queda dos casos de Covid-19 no país, espera-se um bem-vindo alívio da pandemia. Mas, ao fim de um desafio, já aparece outro. Chega agora a conta de meses de desatenção a outros pontos do bem-estar. Mesmo avanço da telemedicina não conseguiu resolver o impasse.

— O SUS não é desenhado com sobra de infraestrutura — explica o oncologista Paulo Hoff, de Rede D’Or — São 600 mil registros de câncer por ano no Brasil, ou seja, 50 mil casos surgindo todo mês. Agora, juntam-se a eles milhares de diagnósticos represados. Esse aumento de demanda vai gerar um stress no sistema.

Outro cenário alarmante desponta nas doenças cardiovasculares, a principal causa de morte no Brasil, com exceção do coronavírus. Entre seus fatores de risco, estão sedentarismo, tabagismo, dietas inadequadas, álcool em excesso, pressão alta e diabetes. Tudo isso acabou agravado durante a quarentena.

A principal prioridade será compensar o que ficou parado. Só a cidade de São Paulo possuía, no fim de julho, uma fila de espera de 143 mil avaliações para operações eletivas e 339 mil consultas com especialistas. Para aliviar a situação, a rede de Hospitais Dia, por exemplo, expandirá seu horário e deixará de receber apenas infectados pelo coronavírus. O SUS prometeu um montante extra de R$ 350 milhões para impulsionar as cirurgias pelo país.

— Houve prejuízo à saúde, mas parte dele é recuperável — acredita o epidemiologista Pedro Hallal, coordenador do estudo Epicovid-19 — Será preciso formar uma força-tarefa ou teremos uma bola de neve e um problema contínuo. Dá para aproveitar esse momento da população sensibilizada para mobilizar a liberação de mais verbas.

Covid longa

Fora isso, há os impactos das sequelas da Covid-19. Uma análise de pesquisadores do Hospital das Clínicas mostrou que 60% dos internados apresentaram sintomas um ano após a alta. O país calculou, até agora, quase 20 milhões de infecções. Muitas dessas pessoas ainda enfrentam complicações de diversas naturezas, de respiratórias a psiquiátricas. Esses pacientes crônicos necessitarão de cuidados complexos e duradouros.

O empresário paulistano Wiam El Sahmarani, de 38 anos, se contaminou em maio. Acabou na UTI, onde foi intubado e ficou por 26 dias. Conseguiu se recuperar, mas retornou para sua casa debilitado. Voltou a andar, porém com dificuldades. Sofre com fadiga pulmonar, cansaço, queda de cabelo, crises de pânico, perda de memória e equilíbrio.

— Faço fisioterapia, acupuntura, drenagem linfática, psicólogo, musculação com personal trainer… Gasto cerca de R$ 3,5 mil por mês com essa estrutura — revela.

A criação de ambulatórios pós-Covid, multiprofissionais, para tratar das sequelas — iniciativa já vista em universidades — se mostra uma boa saída. Além disso, falta um movimento organizado para o aumento dos quadros de mão de obra na rede pública.

— Estamos muito atrasados. Precisamos olhar com uma lupa principalmente a saúde mental, tanto dos acometidos pelo vírus, quanto dos que ficaram confinados, que perderam parentes, adolescentes que não foram à escola — afirma Hallal.

Da parte da população, o primeiro passo é tomar as rédeas de seu bem-estar e investir na precaução. Mais do que nunca, vale o famoso ditado “é melhor prevenir do que remediar”. A pandemia mostrou que a saúde é questão relevante para aqueles com 18 ou 80 anos. Ou seja, é preciso compromisso com o próprio cuidado e marcar um check-up.

Do lado governamental, demandam-se mudanças.

— A pandemia escancarou problemas já conhecidos, como a desigualdade — explica a cardiologista Ludhmila Hajjar, da Rede D’Or — O SUS precisa ser repensado. Faltam médicos nas pontas do país, estruturas de maior complexidade para atender doenças crônicas, tecnologia, financiamento, melhores recursos humanos.

Para Ludhmila, é urgente ainda firmar parcerias com universidades, entidades privadas e indústrias.

— Não dá para começar 2022 como se nada tivesse acontecido — afirma.