fonte: The NY Times
Desde o início de sua carreira, Ariela Marshall, hematologista da Clínica Mayo, em Minnesota, nos EUA, tinha a convicção de que se ela trabalhasse mais e melhor, ela teria sucesso. E ela o fez: formou-se como oradora da turma do segundo grau, frequentou uma universidade de elite e foi aceita em uma das melhores faculdades de medicina.
Mas uma conquista lhe escapou: ter um bebê. Ela havia adiado a gravidez até estar solidamente estabelecida em sua vida profissional, mas, quando finalmente decidiu tentar ter filhos, aos 34 anos, ficou surpresa ao descobrir que não conseguiria, mesmo com remédios para fertilidade. Ariela atribuiu isso ao fato de ter trabalhado em turnos noturnos frequentes, bem como ao estresse e à falta de sono, que podem afetar os ciclos reprodutivos.
Quando ela convidou outras médicas para compartilharem histórias semelhantes, soube que estava longe de estar sozinha; muitas mulheres em seu ramo de trabalho também lutavam contra a infertilidade ou dificuldades para engravidar.
Na verdade, uma pesquisa de 2016 com médicas publicada no Journal of Women’s Health descobriu que quase uma em cada quatro daquelas que tentaram ter um bebê foi diagnosticada com infertilidade — quase o dobro da taxa do público em geral.
— Para muitos médicos, como eu, tudo é muito planejado. Muitos de nós decidimos esperar até que terminemos nosso treinamento e sejamos independentes financeiramente para ter filhos, e isso não acontece até que tenhamos cerca de 30 anos — conta Ariela.
Para aumentar a conscientização sobre o problema, ela ajudou a criar uma força-tarefa de infertilidade com a American Medical Women’s Association. Em junho, a associação realizou seu primeiro encontro nacional sobre fertilidade, com sessões sobre congelamento de óvulos, benefícios e cobertura de seguro para tratamento de fertilidade, infertilidade e saúde mental. A associação planeja realizar outra cúpula no próximo ano.
A alta taxa de infertilidade também é válida para as cirurgiãs. Uma pesquisa com 692 cirurgiãs, publicada no JAMA Surgery, em julho, descobriu que 42% haviam sofrido um aborto espontâneo — mais do que o dobro da taxa da população em geral. E quase metade teve complicações na gravidez.
Assim como outras médicas, muitas cirurgiãs adiam a gravidez até depois de sua residência, o que as torna mais suscetíveis a problemas de saúde e infertilidade.
Maior conscientização no meio médico
Frequentemente, os médicos levam dez anos de formação, entre faculdade de medicina, residências e bolsas. A idade média para as mulheres concluírem sua formação médica é 31, e a maioria das médicas dá à luz pela primeira vez aos 32, em média, de acordo com um estudo de 2021. A idade média para as não médicas darem à luz é 27 anos.
Por meio das redes socias, Ariela se conectou com duas outras médicas que também lutavam contra a infertilidade e, no ano passado, escreveram sobre o assunto na revista Academic Medicine, pedindo mais conscientização sobre fertilidade entre as aspirantes a médicas, começando na graduação.
Elas também propuseram fornecer cobertura de seguro e acesso a avaliação e gerenciamento de fertilidade, além de oferecer suporte para pessoas em tratamento de fertilidade — em dezembro, Ariela deu à luz um menino saudável após um processo de fertilização in vitro.
Durante um ano, a médica Arghavan Salles, que agora tem 41 anos, tentou congelar seus óvulos, mas nenhum foi viável. Uma das autoras do artigo, Arghavan, que é cirurgiã da escola de medicina de Stanford, também está avaliando as despesas do procedimento, que pode custar até US$ 15 mil por tentativa. Ela está considerando a inseminação intra-uterina, que é mais acessível, mas tem menor chance de sucesso.
Em 2019, ela escreveu um ensaio na revista Time sobre ter passado seus anos mais férteis treinando para ser cirurgiã, e só depois descobriu que pode ser tarde demais para ela ter um filho. Posteriormente, muitas médicas entraram em contato com ela para dizer que também haviam lidado com a infertilidade.
— Todas se sentiam tão sozinhas. Todas haviam passado, por contra própria, por essa montanha-russa de lidar com a infertilidade, porque as pessoas simplesmente não falam sobre isso. Precisamos mudar a cultura da escola de medicina e das residências. Temos que fazer um trabalho melhor para incentivar as pessoas em cargos de liderança a dizerem: ‘Por favor, vá e cuide do que você precisa cuidar’.
A privação de sono, a dieta inadequada e a falta de exercícios — condições inerentes às demandas da formação médica e da profissão — afetam as mulheres que buscam engravidar.
Até mesmo encontrar um parceiro pode ser um desafio, dadas as exigentes horas de trabalho, incluindo noites e fins de semana.
— O problema é que você tem que passar muito tempo no hospital, e isso é muito imprevisível —, disse Arghavan Salles. Alguém poderia argumentar que eu deveria ter congelado meus óvulos no início dos meus 20 anos, mas a tecnologia não era muito boa na época. Vemos mulheres mais velhas que são celebridades tendo bebês, e achamos que vai ficar tudo bem, mas não é bem assim. Agora todos estamos percebendo que não temos controle sobre nossas vidas.
A médica Vineet Arora, reitora de educação médica da Pritzker School of Medicine da Universidade de Chicago e outra autora do artigo, está avaliando como ela e outros educadores podem aconselhar melhor os líderes em medicina para lidar com essas questões.
— O que mais me surpreendeu é que a infertilidade é uma luta silenciosa para muitas dessas mulheres, mas quando você vê os dados, percebe que não é incomum — disse ela, que passou por muitas fertilizações in vitro nos seus 40 anos, e finalmente teve seu segundo filho em março passado.
Ela e Arghavan estão analisando dados de um grande estudo que conduziram perguntando a médicos e estudantes de medicina sobre suas experiências em família e de acesso a tratamentos de infertilidade.
Problemas de saúde na gestação
As residentes do sexo feminino que conseguem engravidar também enfrentam problemas de saúde: muitas entram em trabalho de parto prematuro ou abortam devido às longas horas de trabalho e ao estresse da rotina. Mesmo assim, existe uma expectativa que as residentes grávidas trabalhem em turnos de 28 horas, sem dormir. Vineet Arora e outros médicos gostariam de ver uma mudança nessa prática.
A médica Roberta Gebhard, que é presidente de governança e ex-presidente da American Medical Women’s Association, disse que o grupo está defendendo maior flexibilidade para as médicas grávidas, como permitir que elas completem suas pesadas cargas de trabalho no início de sua residência, se souberem que querem tentar ter um bebê mais tarde em seu treinamento.
— Estamos alertando as estudantes de medicina sobre problemas de fertilidade para que elas estejam cientes deles. As pessoas dizem que você não pode ser mãe e médica, e estamos dizendo que você pode, e precisa manter suas opções em aberto. Muito do problema não é apenas em conseguir engravidar. Algumas dessas mulheres estão tão focadas em suas carreiras que não entram em um relacionamento — diz Roberta.
Para as médicas com bebês, até mesmo encontrar tempo e um lugar reservado para bombear o leite materno durante o trabalho pode ser um desafio. Roberta disse que uma profissional que pediu uma pausa para bombear o leite foi instruída a ir atrás de um vaso de planta em uma área pública para fazê-lo.
Ela está otimista de que as coisas começarão a mudar em um futuro próximo, já que mais de 50% de todos os alunos da faculdade de medicina agora são mulheres, embora ainda haja mais homens médicos do que mulheres.
A médica Racquel Carranza-Chahal, de 30 anos, recentemente concluiu sua residência em obstetrícia e ginecologia e trabalha em um consultório privado em Tucson, no Arizona. Ela tem um filho, a quem deu à luz enquanto estava na faculdade de medicina, e uma filha.
— Quando me tornei residente, alguém me disse que eu precisava me divorciar de meu marido e perder a custódia do meu filho se eu quisesse uma bolsa — disse.
Naquele dia, ela estava de plantão e tinha acabado de completar seu segundo turno de 24 horas em sete dias, enquanto estava grávida de oito meses e meio de seu segundo filho.
Em 2019, ela fundou uma ONG chamada Mothers in Medicine (mães na medicina), com a qual ela espera aumentar a visibilidade e o alcance da comunidade para as médicas grávidas ou mães.
— Quero que as mães residentes saibam que devem ocupar seus espaços, que pertencem e que existem recursos à sua disposição, incluindo os legais — disse Racquel, antes de concluir: — Muitas residentes acabam tendo parto prematuro e complicações. Um dia vou mudar isso.