fonte: Folha de SP
Foi o mutismo dos autores que levou a revista Brazilian Journal of Medical and Biological Research (BJMBR) a perceber que havia sido vítima de uma fábrica de papers.
O contato é praxe quando algum problema é apontado em artigos científicos, e a correção é do interesse dos autores. O silêncio confirmou o que o editor-chefe da publicação, Eduardo Magalhães Rego, já desconfiava.
Assinar artigos escritos por outros não chega a ser novidade no meio acadêmico, mas a multiplicação de problemas nos últimos dois anos parece indicar uma “profissionalização” do esquema —daí o nome em inglês “papers mills”.
O problema não se resume ao Brasil. Artigos com fraudes diversas invadiram as revistas científicas de todo o mundo e estão começando a ser retratados agora, gerando um salto nos números.
Em 2021, até meados de deste mês, foram 606, mais do que o triplo de 2020. Os números são da Retraction Watch, base de dados que cataloga todas as correções de estudos feitas nas principais revistas científicas do mundo.
Editores suspeitam que as fábricas de artigos sob encomendas sejam movidas por alunos de pós-graduação em busca de um bico, cientistas mal pagos e até organizações com vários integrantes.
As fábricas também submetem o artigo para editores das revistas e trabalham para aprová-lo na avaliação feita por outros pesquisadores, a revisão por pares.
“Retratação não é bom para nenhum periódico, mas é importante para a informação científica”, diz Rego, que também é professor titular da Faculdade de Medicina da USP e coordenador do Serviço de Leucemia Aguda do Instituto do Câncer de São Paulo.
Editado no Brasil há cerca de 30 anos, o BJMBR figura entre os periódicos de maior qualidade nas áreas de ciências biológicas, educação física e enfermagem, segundo a avaliação mais recente de feita pela Capes, vinculada ao Ministério da Educação.
Desde os episódios que levaram às retratações, em 2020 e 2021, a publicação passou a adotar, como requisito adicional para a submissão do estudo, um formulário que tentar garantir a identificação de autoria dos estudos.
No Brasil não é difícil achar anúncios de serviços de produção de artigos científicos sob encomenda na internet, mas o professor considera o problema mais atrelado à graduação ou a cursos que exigem trabalhos acadêmicos para obtenção do título.
Solange Santos, coordenadora de produção e publicação da SciELO, principal repositório brasileiro de papers, acredita que o impacto das fábricas no país seja baixo, embora difícil de mensurar. No caso da revista, os artigos vinham sendo publicados desde 2017 e foram retratados apenas esse ano.
No mundo, os processos de retratação demoram em média três anos. Segundo Santos, o atraso ocorre porque o processo envolve a denúncia por terceiros e investigação por parte da revista. “Mas uma demora de 12 anos, como no caso do estudo que relacionou autismo e vacinação, é inaceitável hoje em dia”, diz. Ela se refere ao trabalho errado publicado na Lancet em 1998 e até hoje usado como argumento do movimento antivacina.
Desde 1998, o SciELO registrou apenas 40 retratações, número baixíssimo frente aos mais de 22 mil trabalhos publicados apenas neste ano. Nenhuma cita expressamente a atuação de fábricas de papers. Parece um bom quadro, mas provavelmente não é.
Na avaliação da coordenadora, o número deve estar aquém da realidade, devido à trava cultural que associa retratações a más práticas científicas, e não a transparência, que é a garantia de qualidade da publicação. “É importante tirar esse estigma porque desestimula retratações”, diz.
Editores usam o espaço das revistas para fazer denúncias duras do problema. Roland Seifert, professor do Instituto de Farmacologia da Escola Médica de Hannover, publicou em setembro um editorial na Naunyn-Schmiedeberg’s Archives of Pharmacology, em que classifica as fábricas de “gangues criminosas da publicação científica”.
Seifert afirma que as fábricas são um problema da estrutura acadêmica da China. Os serviços das fábricas de papers são oferecidos, principalmente, a profissionais com pouco tempo para se dedicar à pesquisa, mas que recebem promoções e bonificações por produção científica.
Até 2020, exigia-se dos médicos chineses que publicassem no mínimo dois estudos por ano, favorecendo a popularização desse tipo de serviço, diz Seifert. Em 2020, o governo chinês revogou a medida, entre outras decisões tomadas para tentar mitigar o problema de fraudes.
A Folha tentou contato por e-mail com a Embaixada da China no Brasil, para mais informações sobre resultados, mas não recebeu resposta até o fechamento desta edição.
Seifert afirma que a sofisticação das fraudes e a atuação massiva forçam o aprimoramento da prática de revisão por pares tradicional.
Isso porque, em geral, o sistema mais comum de avaliação de estudos para publicação tem como base a confiança mútua —acreditar que os autores não encomendaram o trabalho, por exemplo.
As revistas devem intensificar a vigilância nas etapas pré-publicação, exigindo documentos e termos de confiabilidade dos autores, diz Seifert,. Além disso, o pagamento e profissionalização dos revisores podem ajudar a garantir a melhoria do serviço.