fonte: Folha de SP
por Alexandre Kalache, médico gerontólogo, presidente do Centro Internacional de Longevidade no Brasil (ILC-BR)
Ao entrar na faculdade de medicina da então Universidade do Brasil (depois transformada em Universidade Federal do Rio de Janeiro) em 1965, eu já tinha definido que não viria a ser um médico “convencional”.
Minha vocação clara era a saúde pública, convencido que seria onde eu poderia ter o maior impacto para promover a saúde do maior número de pessoas.
Em um país onde se morria tão cedo, em que a expectativa de vida não chegava a 60 anos, onde as doenças transmissíveis dizimavam populações jovens, minha opção estava feita antecipadamente.
Minha primeira pós-graduação foi em doenças tropicais, pois, na época, essa era a porta de entrada para a saúde pública. Mas era importante reforçar minhas titulações em tempos de turbulência (e truculência) política. Após quatro anos de trabalho acadêmico no Rio, obtive bolsa da OMS (Organização Mundial de Saúde), que me abria duas alternativas, ou um mestrado nos Estados Unidos ou no Reino Unido.
Não tive dúvidas. O Reino Unido era a vanguarda, onde o NHS (sigla em inglês do Sistema Nacional de Saúde) tinha sido criado logo após a Segunda Guerra Mundial. Servia de inspiração para aqueles que, como eu, sonhavam com mais equidade no acesso aos serviços públicos, com cobertura universal da saúde. Tudo por uma fração do custo de sistemas com cobertura incompleta e distorcida, como o dos EUA.
As estatísticas apontavam para o acerto da opção. A expectativa de vida ao nascer (EVN) dos britânicos estava em torno de 72 anos, dois acima da média do OCDE, o clube dos países ricos. Ficava abaixo apenas dos países escandinavos e acima do Japão, que hoje tem a EVN mais alta do mundo, 84,7 anos.
Portanto, para me ater a esse exemplo, o Japão acrescentou 13 anos à vida de um recém-nascido, e o Reino Unido, apenas 9. Outros países superaram os britânicos nesse indicador universalmente utilizado, inclusive nações mais pobres, como Grécia, Portugal e Costa Rica.
No ranking internacional, o Reino Unido —entre os dez países com maior EVN nos anos 1970— hoje ocupa a 27ª posição. Algo não deu certo, é preciso admitir.
E o que não deu certo foi o desinvestimento em serviços de saúde; o contínuo enfraquecimento dos serviços; o desmantelamento de estruturas que promovem a saúde e previnem doenças; a desigualdade em alta; o populismo de recentes governos que deixam tantos para trás, satisfazendo os interesses insaciáveis daqueles insensíveis aos determinantes sociais da saúde.
Após 20 meses de reclusão em casa, no Rio, cheguei a Londres, onde vivem meus filhos e netos. Fiquei feliz por ter podido fazê-lo (quantos na minha faixa etária não sobreviveram?), mas triste ao ver que o país antes modelo tinha perdido terreno.
Como é possível explicar que o Reino Unido, com tanta tradição em saúde pública e tão bons sanitaristas, tenha desperdiçado oportunidades e regredido até mesmo nas medidas para conter o avanço da pandemia por muitos meses?
Que nos sirva de exemplo também no retrocesso. Aqui, o nosso sistema nacional de saúde, o SUS, brindou gerações de cidadãos com o melhor que um sistema público ou privado tem a oferecer, sem distinções de classe social. E, mesmo assim, não esteve imune a ataques inescrupulosos dos gananciosos.
Que seja uma advertência para nós. Afinal, não desperdiçamos oportunidades de modo ainda mais flagrante? Não estamos pondo em risco nosso principal trunfo face à pandemia, o combalido, mas admirável Sistema Único de Saúde?
Viva o NHS britânico e o nosso SUS!