fonte: Associação Paulista de Medicina
Com o aumento de casos de Covid-19, decorrente do avanço da variante Ômicron, mais da metade (51%) dos médicos aponta clima de esgotamento e apreensão entre os profissionais. Sinais de ansiedade (42,7%), insatisfação (27,5%), depressão (15,6%) e revolta (12,6%) também estão sendo percebidos com frequência nas unidades de atendimento.
Os dados são da pesquisa “Percepção dos médicos sobre o atual momento da pandemia de Covid-19”, realizada em parceria pela Associação Paulista de Medicina (APM) e pela Associação Médica Brasileira (AMB), e apresentada em coletiva à imprensa nesta quinta-feira, 3 de fevereiro.
Ao todo, participaram do levantamento 3.517 profissionais de Medicina de todo o Brasil, que responderam ao questionário por meio da ferramenta SurveyMonkey, entre os dias 21 e 31 de janeiro, favorecendo um retrato muito atual da avaliação desses indivíduos. A margem de erro é de dois pontos percentuais.
Estes médicos indicam, por exemplo, que há colegas de trabalho com sintomas preocupantes como: sensação de sobrecarga (64%), estresse (62%), exaustão física ou emocional (56%), ansiedade (56%), distúrbios de sono (39%), dificuldade de concentração (30%) e mudanças bruscas de humor (29%).
Muito disso pode ser atribuído à falta de médicos, enfermeiros e outros profissionais da Saúde, apontada por 44,8% dos respondentes como uma realidade nas unidades onde trabalham, o que tem ocorrido por conta da alta transmissibilidade da variante Ômicron. Não à toa, 87,3% dos médicos relatam que eles ou colegas do ambiente de trabalho tiveram Covid-19 nos últimos dois meses.
“Muito se fala sobre a Ômicron ser ‘boazinha’, mas ontem (2), batemos 900 mortes. Um número que não pode ser desprezado. Os médicos estão observando eles próprios ou colegas se contaminando e isso resulta em falta de médicos e profissionais da Saúde. O que nos leva aos médicos sentindo-se sobrecarregados, estressados, com dificuldades de concentração e problemas de sono, sintomas terríveis para seu exercício. Isso significa que temos um grave comprometimento da saúde destes profissionais, com esgotamento físico-emocional expressivo”, sintetizou César Eduardo Fernandes, presidente da AMB, durante a coletiva.
Além disso, 96,1% dos que atendem em locais que recebem pacientes com Covid-19 também observam tendência de alta no número de casos em algum grau. Quanto aos óbitos, a tendência de alta é apontada por 40,5%.
Sucesso da vacinação
Hoje, uma das (ainda poucas) certezas que temos em relação à pandemia de Covid-19 é a efetividade das vacinas, que representaram um grande avanço no combate a esta situação calamitosa. Esta é a opinião de José Luiz Gomes do Amaral, presidente da APM, que acredita que o Brasil caminhou muito bem na vacinação, apesar do desencontro de informações e das fake news que são veiculadas.
“Apesar de todos os contratempos, temos uma população com consciência de que é importante não apenas se vacinar, como concluir o esquema. Agora, sofremos uma pandemia gravíssima dos não-vacinados. São principalmente esses que ocupam os leitos hospitalares, as unidades de terapia intensiva (UTIs) e as páginas dos obituários”, afirmou Amaral.
Estas declarações vão ao encontro da percepção identificada na pesquisa. Entre os profissionais da Medicina, 74% deles afirmaram que a adesão à vacina está sendo observada adequadamente pela população. Para efeito de comparação, a segunda medida mais bem aplicada pela sociedade, na visão dos médicos, é a higiene das mãos com água e sabão ou álcool em gel, apontada por 40% dos respondentes.
Na atuação destes profissionais, a vacinação também tem alta prevalência. Apenas 0,2% dos médicos indicaram ter pacientes que recusam a imunização e 1,2% afirmaram que os seus pacientes tomaram apenas uma dose. Outros 17% acreditam que seus pacientes, apesar de terem tomado duas doses de vacina, não aderirão ao reforço. A maioria (81,6%), porém, tem observado respeito ao esquema vacinal.
Em relação à vacinação infantil, os índices de otimismo são um pouco menores. Apenas 71,3% dos médicos pensam que os pais e responsáveis farão as crianças cumprirem todo o esquema vacinal. Há quem pense que eles não concederão a imunização aos pequenos (12,2%) ou que o farão apenas parcialmente (16,5%).
Segundo o presidente da APM, esta é uma situação nova, já que o Brasil jamais conviveu com problemas de adesão vacinal, mesmo entre crianças. Na sua avaliação, este cenário atual ocorre, principalmente, por conta da circulação de notícias falsas e mal-intencionadas sobre o tema, que quando atingem as redes sociais, têm efeitos devastadores, fazendo com que muitos retrocedam.
“Penso que tudo tem de ser feito para colocar as vacinas como necessárias para ir às escolas e que os serviços voltados à segurança e à proteção da criança devem se mobilizar. A ideia de que a Covid-19 nas crianças não representa riscos já caiu por terra. O número de mortes nesta faixa etária é absolutamente inaceitável”, disse.
Nesse sentido, César Fernandes ressaltou a necessidade de o Ministério da Saúde evitar discursos dúbios. No caso específico da vacinação infantil, a pasta postergou a decisão, por exemplo, fazendo consultas públicas enquanto a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) já havia aprovado as vacinas da Pfizer e, posteriormente, da Coronavac para crianças entre 5 e 11 anos.
Condução das autoridades é desaprovada
O Ministério da Saúde, inclusive, teve a sua atuação reprovada por metade dos médicos que responderam a pesquisa. Mais especificamente, as avaliações foram: péssima (34,5%), ruim (15%), regular (19,2%), boa (21,5%) e ótima (7,2%). Outros 2,6% preferiram não opinar.
Para o presidente da AMB, esse número expressivo demonstra que a política de enfrentamento à pandemia do Ministério da Saúde não está encantando os médicos. “Vivemos em um País extremamente dividido ideológica e politicamente, e muitos de nós podemos nos deixar contaminar por visões políticas e partidárias. Proponho-me a respeitar todas elas, mas isso não deve interferir na gestão da Saúde. Políticas de Saúde devem ser de Estado, não de Governo, buscando sempre o melhor para a população. Interpreto esses números como uma desaprovação bastante enfática.”
Já o presidente da APM afirmou que esta percepção negativa é lógica. Ele lembrou, primeiro, que é esperado do Ministério da Saúde que ofereça à sociedade informações precisas. Apesar disso, a pasta convive com um apagão de dados que já dura meses. Ademais, há falta de testes sistemáticos e a compilação e análise dos resultados é problemática.
Amaral também recordou que, a pedido do próprio Ministério, um grupo de notório saber e de credibilidade, especialistas em Covid-19, trabalhou durante meses para construir documentos com orientações sólidas para o enfrentamento da doença. Apesar disso, “vimos o episódio grotesco de um secretário da pasta recusar os pontos de vista dessa comissão, da Anvisa e da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec). Portanto, dois anos passados de pandemia, o Ministério não é capaz de oferecer recomendações consistentes, apenas fragmentos de informações”.
Falando sobre o papel do poder público nas campanhas de vacinação, o presidente da APM clamou para que o Ministério exerça todas as medidas possíveis para convencer a população a tomar a vacina. “Se tivermos que entrar em escolas, no trabalho, em um hospital, preciso ter meu passaporte de vacinação para oferecer segurança aos demais. Quando precisamos viajar, mostramos isso. Seria, portanto, fundamental que nossas autoridades de Saúde fossem coesas nessa direção. E não encontramos isso.”
Expectativas para o futuro
Os médicos também foram questionados sobre o que esperam em relação ao prosseguimento da pandemia. Há um pequeno grupo (11,5%) que pensa que a Ômicron seja a última variante de preocupação do Sars-CoV-2. Na outra extremidade, há quem pense (10,5%) que ainda surgirá uma variante com grande número de casos e alta letalidade. A maioria (57,1%), entretanto, espera que uma nova variante de preocupação surja com grande número de casos, mas baixa letalidade, enquanto 20,9% pensam que essa variante irá surgir, mas com números pequenos tanto de letalidade, quanto de casos.
Para José Luiz Amaral, o futuro em relação a novas variantes de atenção é incerto. Ele entende que elas podem surgir nas “duas extremidades” – menos ou mais infecciosas e letais do que as antecedentes. “Estamos, então, trabalhando contra o tempo. Novas variantes de preocupação poderão surgir e os médicos têm isso na consciência. Por isso, há uma sensação de estarmos enxugando gelo e com a possibilidade de ‘mais gelo’ pela frente. Isso nos leva ao esgotamento e à exaustão.”
Acerca da fadiga dos profissionais, Fernandes comentou: “A única maneira de profissionais trabalharem com mais segurança e menos danos à saúde física e emocional é reduzindo o número de casos. Se os números continuarem excessivos, haverá comprometimento das equipes e precariedade do trabalho médico. Seria óbvio pedir que realoquem profissionais de outras unidades, mas praticamente não existe serviço que esteja trabalho com conforto, todos estão com carência”.
Assim, o presidente da AMB entende que a única maneira de mitigar essa situação é aumentando as medidas de prevenção e acelerando a vacinação, com falas uníssonas e bem dirigidas – sem fake news – sobre a importância de máscaras, vacina e isolamento. “O Ministério não pode titubear. Praticando tudo isso, contribuirá para a redução dos casos e protegerá não somente a população, mas também os médicos e profissionais da Saúde, que terão condições de trabalho mais aceitáveis.”
A imensa maioria (84%) acredita que o papel social dos médicos não tem sido reconhecido por gestores e governos, nem convertendo-se em valorização e remuneração. Outros 14% pensam que esse reconhecimento ainda ocorrerá e apenas 2% dizem testemunhar esse processo.
Não há otimismo também em relação à administração dos sistemas de Saúde daqui em diante. 69,3% dos médicos pensam que os gestores e autoridades não passarão a tratar a área de forma mais profissional e prioritária, mesmo que a pandemia de Covid-19 tenha tornado agudas algumas de suas fragilidades históricas. 12,4% pensam que isso irá ocorrer e 18,3% preferiram não opinar.