fonte: O Globo
É andando em uma esteira parecida com as de academia que a pediatra Ednar Cerqueira, de 72 anos, trata as sequelas deixadas pela Covid-19, em especial a dificuldade de se locomoção. Mas se engana quem pensa que o tratamento é só a atividade física: com os passos na esteira, a aposentada também comanda um jogo de realidade virtual exibido em uma tela em frente ao equipamento.
A dinâmica é simples: para desviar de obstáculos do jogo e cumprir as missões colocadas, ela precisa se locomover na vida real, trabalhando o esforço físico e o planejamento motor.
— Melhorei meu equilíbrio, minha mobilidade. E já estou prática nos joguinhos, que são até divertidos — conta a pediatra.
Apesar de ser mais conhecida por sua presença no mundo dos games, a realidade virtual tem se mostrado uma grande aliada para a reabilitação de pacientes com sequelas da Covid-19. Mas há ainda outros usos da tecnologia, como tratamento de fobias e recuperação de pacientes com paralisia nas pernas ou nos braços. Estudos recentes ainda mostram que a estratégia também reduz sensação de dor no tratamento de câncer infantil.
No caso da Covid-19, o médico fisiatra Andre Sugawara, da Rede Lucy Montoro, explica que a doença altera o sistema nervoso central e faz com que muitas pessoas se esqueçam de como executar tarefas simples, como andar e movimentar os braços.
— O treino motor associado à realidade virtual acelera a recuperação e restituição dessas memórias inconscientes — explica ele.
Ednar, que veio de Maceió a São Paulo para se tratar na Lucy Montoro, conta que viu o progresso na vida real e no game.
Em uma das simulações, ela comanda um carrinho de supermercado que se move de acordo com seus passos na esteira. O objetivo é coletar ingredientes para montar uma pizza.
— Quando eu cheguei, não conseguia montar nenhuma pizza. Hoje já faço três — diz ela, que por conta da Covid precisou se afastar do emprego. — Melhorei meu equilíbrio, minha mobilidade. E já estou prática nos joguinhos, que são até divertidos.
A realidade virtual também ajuda no tratamento de Maria Del Pilar, de 62 anos, que sofreu uma parada cardiorrespiratória em maio de 2019 e ficou três meses em coma. Quando acordou, a engenheira química aposentada só conseguia mexer os olhos, relatou ao GLOBO a sua cuidadora, Josiane Silva Santos, de 48 anos.
— Com as fisioterapias robóticas, hoje ela consegue ficar de pé, ajudar a gente a levantar, virar na cama —afirma Josiane, completando que todo o tratamento é feito pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Como Pilar ainda não consegue andar, a caminhada na esteira é feita com a ajuda de um suporte preso no quadril e nas pernas, o que dá segurança para ela ficar de pé e poder andar.
O jogo da realidade virtual simula uma caminhada e, ao final, exibe os metros percorridos e a quantidade de passos.
— É um momento de independência para ela — diz a cuidadora. — A gente percebe uma melhora visível .
De acordo com Andre Sugawara, a impossibilidade de andar ou a paralisia fazem apagar a “memória” do movimento no corpo.
— A realidade virtual facilita o uso de vários recursos cerebrais para simular o movimento e fazer o cérebro reconstruir a memória de como se faz as tarefas. Desta forma, diversas áreas cerebrais são ativadas, levando à competição, motivação, satisfação e repetição, que são as bases da neurociência para o aprendizado — explica.
Tratamento de câncer infantil
Um estudo recente feito por Michelle Zampar Silva, mestra e doutora pelo programa de Saúde da Criança e do Adolescente pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP), mostrou que a realidade virtual também reduz a dor aguda durante a coleta de sangue de crianças e adolescentes em tratamento de câncer.
— Comparamos um dia de coleta de sangue sem o uso do óculos de realidade virtual e depois com o uso. O resultado foi a diminuição do choro, da agitação. E pelo oxímetro, vimos que a frequência cardíaca, que é mais alta quando há dor, também diminuiu — disse Michelle, ressaltando que a pesquisa foi feita com 50 pacientes, de 5 a 18 anos, que aceitaram jogar o jogo durante a retirada de sangue.
De acordo com a especialista, isso ocorre porque há distração da atenção do paciente , que fica voltada para o equipamento da realidade virtual imersiva e se torna mais interessante do que oprocesso externo de rotina.
— Além da dor, as crianças também nos relataram que o óculos era um lazer no hospital, uma brincadeira, o que é muito importante, pois há uma redução das atividades de lazer com amigos, famílias e outras redes sociais neste período.
O jogo utilizado por Michelle foi desenvolvido em parceria com pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp), sob orientação de Dr. Elvis Terci Valera e Dra. Luzia Iara Pfeifer. Ao todo, são três fases cujo nível de dificuldade pode ser alterado de acordo com o paciente. A ambientação do jogo considerou a realidade do público, diz Michelle. Os ambientes têm árvores, e não neve ou o frio, que fazem alusão ao ambiente hospitalar. E o personagem é uma criança, com aspecto saudável, justamente para o paciente se espelhar no próprio avatar.
A especialista diz ainda que a tecnologia vem sendo utilizada para outros fins, como tratamento de fobias. No caso da realidade virtual aumentada, onde o ambiente virtual se conecta com o físico, serve como uma atividade física e que tira o paciente do ócio, que é mais frequente durante a hospitalização.