fonte: O Globo

O Brasil vive uma epidemia de câncer, diz o presidente do Instituto Nacional do Câncer (Inca), Luiz Antônio Santini. E as demissões na entidade tornarão ainda mais difícil a luta contra a doença. Com elas, afirma, será perdido um conhecimento acumulado por 20 anos.

O senhor acaba de retornar do Fórum Mundial de Oncologia, na Suíça. Qual o quadro da doença no mundo?

O câncer representa hoje uma ameaça crescente para a saúde no mundo. É a doença que mais cresce e uma das maiores causas de morte, ao lado das doenças cardiovasculares. São mais de oito milhões de casos novos a cada ano — um aumento de quase 40% nos últimos 20 anos. E a Organização Mundial da Saúde (OMS) prevê que, em 2030, 22 milhões de pessoas, entre homens, mulheres e crianças, serão diagnosticadas com câncer por ano e 13 milhões morrerão da doença. A maioria das mortes por câncer que ocorre hoje, e tende a aumentar ainda mais, se dá nos países de baixa e média renda: as dificuldades de acesso da maioria da população à informação e ao tratamento fazem toda a diferença. Um exemplo disso é o câncer de mama. Embora seja muito mais comum em países desenvolvidos, a maioria das mortes por este tipo de tumor ocorre nos países de baixa renda. Esses países também são responsáveis por 85% das mortes por câncer de colo de útero — um tipo de tumor totalmente evitável quando diagnosticado precocemente. Nos 25 países mais pobres do planeta, os cânceres pediátricos são fatais em 90% dos casos, enquanto que nos países mais ricos quase 90% das crianças sobrevivem à doença. Os governos em todo o mundo, inclusive na América Latina, já começaram a se dar conta, com atraso, de que o rápido aumento dos casos de câncer nas populações é uma realidade, e seu impacto na vida social e econômica de seus países é enorme.

E como está a situação no Brasil?

Segundo as estimativas do Inca, ocorrerão a cada ano, em 2014 e 2015, meio milhão novos casos de câncer. Repete-se no Brasil o mesmo padrão de desigualdade que há no resto do mundo, de acordo com as diferentes regiões país, em função de expectativa de vida, renda, educação e exposição a fatores de risco como o tabagismo. Nas regiões mais pobres predominam os cânceres ligados, por exemplo, a fatores infecciosos, como o câncer de colo uterino e o câncer de estômago. O câncer de pulmão, essencialmente ligado ao tabagismo, já começa a decrescer em homens, porém, ainda não em mulheres. Isto decorre de uma maior redução de consumo de tabaco entre os homens do que entre as mulheres.

Pode se considerar que o Brasil vive uma epidemia de câncer?

Sim. O câncer é considerado pela OMS uma epidemia global, porém, diferentemente das epidemias provocadas por agentes infecciosos, é muito mais complexa, devido à multicausalidade e à diversidade de fatores de risco envolvidos, desde agentes infecciosos como os vírus HPV e hepatites, bactérias como a H-pilori, até fatores ambientais como radiação solar, radiações ionizantes (raios-X, mamografias, etc.), sem falar de estilos de vida com alimentação inadequada e consequente obesidade, ou de fatores genéticos que contribuem com aproximadamente 10% dos casos.

Que fatores contribuem para a incidência da doença no país? Estrutura nas cidades, diagnóstico tardio?

Os fatores mencionados acima, além da idade, contribuem para o aumento da incidência. O diagnóstico tardio contribui para um aumento da mortalidade. Em muitos casos, infelizmente não em todos, é possível fazer o diagnóstico precoce e com isto reduzir de forma importante a mortalidade. O Brasil vem desenvolvendo, ao longo dos últimos 20 anos, algumas estratégias para reduzir a mortalidade por alguns dos cânceres mais prevalentes, como colo de útero, mama e pulmão, com resultados expressivos. Desde 2005 o Inca vem promovendo uma Política Nacional de Atenção Oncológica, fortalecida pelo Plano de Ação apresentado pela Presidenta Dilma em março de 2011, que vem sendo implementado.

Considera o investimento do governo suficiente?

Houve avanços importantes nos últimos cinco anos. O Ministério da Saúde promoveu importante revisão da tabela de Procedimentos Radioterápicos e Cirúrgicos, além da Inclusão de 27 novos medicamentos e 56 novos procedimentos na tabela. Pode-se perceber crescimento dos recursos de custeio para a Assistência Oncológica, de 2008 a 2013, sendo 149% na cirurgia oncológica, 144% na radioterapia, e 45% na Quimioterapia. Pode-se incluir nos investimentos da Atenção Oncológica o Plano de Expansão da Radioterapia no SUS, com edital para aquisição de 80 soluções de radioterapia no valor de R$ 380 milhões.

E a situação do Inca? Há mais de 500 demissões previstas para ocorrer até março de 2015…

Um dos erros neste processo de substituição de “terceirizados” é encarar esta situação simplesmente como uma “contagem de cabeças”. Não estamos falando de profissionais que foram agregados à força de trabalho para atividades operacionais não especializadas. Os 583 remanescentes, de uma força de trabalho que chegou a ter aproximadamente 1.800 celetistas (profissionais regidos pela CLT), que atuavam no Inca por meio da Fundação Ary Frauzino, foram contratados nos moldes dos processos seletivos das maiores e melhores empresas do país, para atuarem num modelo de gestão, hoje considerado ilegal — porém formalizado, incentivado, reconhecido e premiado. Esta relação permitiu importantes avanços para a instituição, tornando-a referência reconhecida internacionalmente. Com essas demissões certamente o Inca passará por um momento de inflexão e terá que se redescobrir como instituição, não somente pela perda de um conhecimento acumulado em mais de 20 anos. E entrará no modelo puro da Administração Direta, com todo o engessamento conhecido deste modelo e totalmente incompatível com uma instituição que atua na fronteira do conhecimento.

Isso tem consequências sobre o funcionamento do instituto?

O Inca já atua hoje com um déficit de 400 servidores, vacâncias estas geradas por aposentadorias, exonerações, demissões e óbitos. Já houve, desde 1º de janeiro de 2014 até o momento atual, a perda de mais 172 estatutários, que não serão repostos, e o concurso em andamento se destina apenas a substituir os 583 “terceirizados”, o que demonstra a ineficácia do atual modelo. Esse déficit crescente tem grande impacto, principalmente na área assistencial. A saída dos profissionais celetistas em 31 de março de 2015 inviabilizará o funcionamento das unidades de Cuidados Paliativos (HC IV) e de Ginecologia (HC II) — nesta unidade, por exemplo, ocorrerá interrupção de atividades na Unidade Transfusional, no Serviço de Radiologia e no CTI. Além disso, no HC I, maior hospital do Inca (temos um total de 05), será interrompido o funcionamento do Setor de Pronto Atendimento Adulto e dos Serviços de Anestesia, Radioterapia, CTI Pediátrico e Oncologia Pediátrica. Mais dramático e de impacto em toda a assistência oferecida pelo Inca será o fechamento do Serviço de Anatomia Patológica, inviabilizando a adequada definição de diagnóstico histológico, que é definidor da conduta e do prognóstico de cada caso.