fonte: O Globo
por Lígia Bahia, médica e professora na Faculdade de Medicina da UFRJ
A saúde continua no topo das preocupações da população, segundo pesquisas de opinião recentes. Problemas como as causas de morte de criança por suposta negligência na Cidade de Deus, na Zona Oeste do Rio, périplo de pacientes e queixas generalizadas sobre descaso com aflição, dor e sofrimento não foram resolvidos em 2024. Mas, se mantidas em níveis republicanos as pressões e disputas pelo Ministério da Saúde, o sistema público capilarizado e coordenado, a inteligência epidemiológica, a produção de vacinas e medicamentos e a racionalidade técnica para a tomada de decisões seguirão apresentando parâmetros razoáveis.
Em 2025, tanto o governo federal quanto secretarias municipais e estaduais de Saúde preveem aumentar a oferta de serviços ambulatoriais e hospitalares, incluindo os de alta complexidade universitários. Esforços para ampliar o acesso a tecnologias estratégicas para o SUS, como a saúde digital, poderão crescer e aparecer ao longo do ano. Estão de volta informações sobre a situação sanitária, crescente transparência sobre a alocação de recursos e diálogos entre dirigentes da saúde das três esferas administrativas e com o Judiciário e o Legislativo. A polarização ciência versus “minha opinião pessoal” não desapareceu, mas perdeu magnetismo. Vacinas e vacinação, legislação sobre estupro e gravidez, alimentos ultraprocessados, agrotóxicos, armas de fogo e riscos à saúde retornaram à pauta pública.
Aquele SUS que ora conta com apoios políticos, ora é predado por emendas parlamentares, cronicamente subfinanciado, reviveu. Mas continua sem tração para reverter as persistentes e injustas desigualdades na saúde. Um SUS de sobreaviso para emergências sanitárias, como a Covid-19, e assistência aos mais pobres não é uma opção inteiramente confiável para as classes médias. Entretanto, na virada do ano, o esquema — o sentimento que faz dizer “Viva o SUS”, o uso de vacinas e medicamentos caros e a assistência médica mediante plano privado — se mostrou instável.
Profissionais liberais, funcionários públicos mais graduados e trabalhadores autônomos com maior renda foram empurrados para um padrão de atendimento inferior na rede privada. Aumentos das mensalidades, descredenciamentos e novos artifícios para negar cobertura viraram um tormento. Está em curso uma nova segmentação. Cartões de desconto para quem pode pagar um pouco. Plano quase sem opções, serviços longe de casa, dirigidos pela empresa, caros e reajustes acima da inflação para a classe média tradicional.
A movimentação do setor privado se completa com a proposição, para ambos os grupos populacionais (médios e remediados), de uma aplicação perversa do mínimo múltiplo comum. Inovações tecnológicas serão aquelas adotadas e financiadas pelo SUS. Enquanto o SUS se move lentamente, o setor privado avança célere em direção a um modelo de atenção ainda mais fragmentado e lucrativo. Consultas remotas baseadas quase exclusivamente em algoritmos, retenção proposital de pacientes graves em unidades de urgência e prescrição de medicamentos de menor custo e eficácia degradam a medicina e o sistema de saúde.
Repetir que saúde pública é prioridade bate, porém não furou a pedra dura. Avançamos ao comprovar que o SUS estimula e integra um complexo econômico e industrial, é público e mantém relações permanentes com o privado. Por outro lado, as desonerações de obrigações fiscais para empresas de saúde, justificadas por sua relevância pública, não impedem que idosos gastem metade da renda para continuar no plano. Benefícios públicos seriam obrigação pública; a piora das garantias dos cuidados, mero equilíbrio do mercado.
Métricas e parâmetros para avaliar o que é bom uso dos impostos pagos direta e indiretamente podem contribuir para apertar o passo em direção ao SUS de qualidade. Embora não sejam tempos de grandes mudanças para a saúde, é hora de afrouxar as cordas que prendem as políticas de saúde à lógica público-privada, alheia aos direitos de cidadania, irresponsável, insensível aos valores de solidariedade e sustentabilidade.