fonte: O Globo

Após uma polêmica decisão judicial obrigar a Universidade de São Paulo, campus São Carlos, no interior do estado, a distribuir cápsulas de uma substância química anunciada como cura do câncer, a reitoria divulgou um comunicado, dirigido aos pacientes. A universidade também apura o envolvimento de professores ou funcionários que teriam divulgado a promessa de cura. E estuda, ainda, a possibilidade de denunciar, ao Ministério Público, os profissionais que “estão se beneficiando do desespero e da fragilidade das famílias e dos pacientes”.

A fosfoetanolamina não é um remédio e muito menos foi testada em humanos. Também não há registro pela Anvisa. Mesmo assim, a USP tem recebido mandados judiciais para cumprir.

O produto vinha sendo entregue de graça por funcionários da USP no campus de São Carlos. Uma portaria do Instituto de Química restringiu esta distribuição. O caso virou uma disputa judicial. Pessoas com câncer passaram a entrar na Justiça para obter o produto da USP. A Fazenda do Estado de São Paulo pediu à Justiça a suspensão da entrega da fosfoetanolamina. Esse pedido, segundo o TJ, somava-se a outro da USP, que conseguiu que fossem barradas as liminares que pediam acesso à droga.

Agora, a substância foi liberada por uma recente decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo. “Não se podem ignorar os relatos de pacientes que apontam melhora no quadro clínico”, escreveu o presidente do TJ, desembargador José Renato Nalini. Para ele, o “maior risco de perecimento é mesmo o da garantia à saúde.”

“Essa substância não é remédio. Ela foi estudada na USP como um produto químico e não existe demonstração cabal de que tenha ação efetiva contra a doença: a USP não desenvolveu estudos sobre a ação do produto nos seres vivos, muito menos estudos clínicos controlados em humanos. Não há registro e autorização de uso dessa substância pela Anvisa e, portanto, ela não pode ser classificada como medicamento, tanto que não tem bula”, diz trecho da nota da universidade.

A USP diz que a substância não foi estudada como um remédio para curar vários tipos de cânceres. “Não se trata de detalhe burocrático o produto não estar registrado como remédio – ele não foi estudado para esse fim e não são conhecidas as consequências de seu uso”.

A Anvisa informou que não recebeu qualquer pedido de avaliação para registro desta substância nem pedido de pesquisa clínica, que é a avaliação com pacientes humanos. “Isto significa que não há nenhuma avaliação de segurança e eficácia do produto realizada com o rigor necessário para a sua validação como medicamento”, diz a agência.

De acordo com o Instituto de Química de São Carlos, a fosfoetanolamina foi estudada pelo professor Gilberto Orivaldo Chierice, já aposentado.

“A USP não é uma indústria química ou farmacêutica. Não tem condições de produzir a substância em larga escala, para atender às centenas de liminares judiciais que recebeu nas últimas semanas. Mais ainda, a produção da substância em pauta, por ser artesanal, não atende aos requisitos nacionais e internacionais para a fabricação de medicamentos. Por fim, alertamos que a substância fosfoetanolamina está disponível no mercado, produzida por indústrias químicas, e pode ser adquirida em grandes quantidades pelas autoridades públicas. Não há, pois, nenhuma justificativa para obrigar a USP a produzi-la sem garantia de qualidade”.

Segundo a universidade, os mandados judiciais serão cumpridos, dentro da capacidade.

Em uma página em uma rede social, onde a substância é chamada por pacientes e parentes de doentes como “a esperança proibida contra o câncer”, há instruções de como ingressar na Justiça com o pedido de liminar. Há vídeos de depoimento, que são compartilhados, e ainda muitas pessoas pedindo telefone de advogados.

DECISÃO JUDICIAL

O Tribunal de Justiça de São Paulo havia suspendido liminares que autorizavam a entrega da substância pela USP em São Carlos. Mas o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, concedeu liminar para que a droga continuasse a ser entregue para um determinado paciente. A decisão fez com que o TJ-SP reconsiderasse a suspensão.

Na decisão, o presidente do TJ-SP, desembargador José Renato Nalini, observa: “Em contrapartida, não se podem ignorar os relatos de pacientes que apontam melhora no quadro clínico. Pondo-se de parte a questão médica, que se refere à avaliação da melhora, do ponto de vista jurídico há uma real contraposição de princípios fundamentais. De um lado, está a necessidade de resguardo da legalidade e da segurança dos procedimentos que tornam possível a comercialização no Brasil de medicamentos seguros”.

O desembargador diz ainda: “Conquanto legalidade e saúde sejam ambos princípios igualmente fundamentais, na atual circunstância, o maior risco de perecimento é mesmo o da garantia à saúde. Por essa linha de raciocínio, que deve ter sido também a que conduziu a decisão do STF, é possível a liberação da entrega da substância”.