fonte: O Globo

Uma equipe multidisciplinar do Hospital dos Servidores do Estado (HSE), liderada pelo cirurgião cardíaco Olívio Souza Neto, realizou uma cirurgia minimamente invasiva por vídeo. Com estenose mitral grave, a paciente Fabiana Felisberto, grávida de 14 semanas, não podia levar a gestação adiante, sob risco de morrer junto com o bebê. Todas as indicações eram de aborto terapêutico, mas ela disse não. Foi firme. Os médicos então optaram, junto com ela, por uma operação diferente sob vários aspectos, para salvar a mãe e, talvez, o bebê. Um ano depois, Enzo está tão forte quanto a mãe, e completa 6 meses de vida. A experiência — inédita no mundo, segundo a equipe médica — deve ser publicada em revistas de referência e será contada no American Association for Thoracic Surgery AATS Cardiovascular Valve Symposium 2015, um congresso americano que, pela primeira vez, acontece no Brasil, dias 20 e 21 deste mês.

— A gravidez da Fabiana desequilibrou a doença, que já tinha indicação cirúrgica. Quando a encontrei, ela pediu que não tentasse convencê-la a tirar o bebê, porque ia dar tudo certo. Eu disse que ela poderia não aguentar, mas, de fato, a cirurgia ocorreu sem a menor intercorrência. Há coisas que não conseguimos explicar — lembra Souza Neto, chefe do serviço de cirurgia cardíaca do HSE.

Alguns anos antes de engravidar do Enzo, Fabiana teve um aborto espontâneo de gêmeos aos 20 anos. Aparentemente isso nada teve a ver com a doença no coração, descoberta aos 14, depois que uma forte dor de garganta se transformou em febre reumática e atingiu o coração. Abortar novamente não era uma opção.

— Pensei: se Deus quiser levar meu filho durante a cirurgia, tudo bem, mas não vou fazer nada antes — conta Fabiana, hoje com 26 anos, evangélica da Igreja Palavra Viva, em Belford Roxo. — O que aconteceu comigo foi milagre, e Deus é tão firmeza que colocou o Dr. David no meu caminho — sorri.

David Esteves é o cardiologista responsável pela unidade materno-fetal do HSE. Ele recebeu a Fabiana, transferida do Instituto Nacional de Cardiologia, com a indicação de aborto terapêutico como condição para a cirurgia. No consultório dele, a história mudou.

— As diretrizes em medicina vêm de estudos populacionais, mas, quando se traz para o indivíduo, as decisões têm que ser compartilhadas, é uma pessoa que está ali. E, neste caso, a grande decisão foi dela — observa ele.

A opção da equipe pela cirurgia minimamente invasiva videoassistida levou em consideração diversos aspectos para preservar o bebê, que já teria que ser forte para aguentar a anestesia geral aplicada na mãe.

— Toda cirurgia de gestação é feita no segundo semestre para evitar qualquer efeito na formação do bebê, mas, no caso dela, pela sobrecarga de volume circulatório, optamos pelo primeiro trimestre — conta a obstetra Juliana Esteves, que também fez parte da equipe.

Na mesa de cirurgia foi feita uma incisão infra-mamária (como na cirurgia plástica para inserção de prótese de silicone) para não atrapalhar a amamentação. Os médicos inseriram uma óptica para captar as imagens intracardíacas e se orientar no implante da nova prótese mitral. Durante a cirurgia, que durou cinco horas, a parada do coração e do pulmão aconteceu com o auxílio de uma máquina (circulação extracorpórea) que recebe o sangue do corpo através de uma cânula na veia femoral e devolve o sangue oxigenado por meio da artéria femoral. Estas conexões se deram através de uma incisão de 2cm a 3cm na virilha.

— A cirurgia foi feita com normotermia da paciente, quando a temperatura cai normalmente, para evitar o sofrimento do feto. Em uma cirurgia normal, a opção seria a hipotermia, quando a temperatura cai para até 28°C, mas isso diminuiria o fluxo sanguíneo, e o bebê poderia entrar em sofrimento — explica Souza Neto, que ressalta que, neste tipo de procedimento, a intenção é diminuir o tempo de UTI do paciente, para reduzir a quantidade dos medicamentos que possam prejudicar o bebê, assim como os riscos de infecção, a dor e a infusão de hemoderivados.

Após a cirurgia, por causa dos cuidados com o bebê, Fabiana ficou internada por 15 dias. Ela teve anemia, precisou fazer transfusão de sangue e ainda enfrentou uma pneumonia.

Enzo nasceu dia 29 de abril deste ano, uma cesárea na 38ª semana. E Fabiana está ótima, até dança no grupo da igreja. A cicatriz da cirurgia é imperceptível. Para definir Enzo, ela dá um suspiro:

— Ele é um xodó, uma bênção.