fonte: Folha de SP

por Cláudia Collucci

Na Idade Média (séc. 5º-15), nozes eram usadas para tratar enxaqueca, raiz de Ranunculus, indicada para hemorroidas, e Hyoscyamus niger, para tratar cáries. Seguindo os preceitos da Grécia antiga, a medicina da época adotava a chamada teoria de assinaturas, segundo a qual se uma planta se assemelhasse a uma parte da anatomia do corpo humano, ela poderia curá-la.

O período ficou conhecido como a Idade das Trevas, a Igreja Católica controlava tudo, inclusive, o desenvolvimento científico. A fé era o único caminho a seguir.

Hoje, 14 de abril de 2016, com a publicação da lei 13.269 no “Diário Oficial da União”, autorizando o uso da substância fosfoetanolamina por pacientes com câncer, voltamos à trevas. A despeito da posição contrária do Ministério da Saúde, do MCTI (Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação), da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e da comunidade científica e da saúde de uma forma geral, a presidente Dilma Rousseff (PT) liberou a produção, a distribuição e o uso de uma substância sintética, que ficou conhecida como a “pílula do câncer”, que não tem estudos clínicos concluídos que atestem sua eficácia e segurança.

Os cinco primeiros relatórios de pesquisas financiadas pelo MCTI para avaliar a segurança e eficácia da substância indicam que a molécula não age contra o câncer. Além disso, nas análises, as “pílulas” possuem uma composição irregular, com 32,2% de fosfoetanolamina, no máximo.

A repercussão sobre a sanção de Dilma dominou as redes sociais na manhã desta quinta. “A lei é, na essência, um crime contra a saúde pública. Só nos resta recorrer ao STF [Supremo Tribunal Federal]”, disse o ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão. “Tem gente apostando que, depois dessa, o próximo ‘remédio’ a ser liberado será sopa de jararaca”, brincou Stevens Rehen, considerado um dos maiores cientistas da sua geração e que recentemente emplacou artigo sobre zika na revista “Science”. “Legislativo e Executivo se juntam para pisotear na ciência deste país. Não basta inviabilizar o financiamento mas vão além, tripudiando sobre o próprio modelo de tomada de decisão na ciência. Criminosos”, afirmou o médico e professor Luiz Antonio Santini, que já dirigiu o Inca (Instituto Nacional do Câncer).

Sim, é um dia de luto para a saúde e a ciência brasileira. A atitude irresponsável em cascata, a começar pela USP que permitiu que a substância fosse fabricada e distribuída no seu quintal por anos, passando pelos congressistas e terminando na canetada de Dilma, abre um precedente muito perigoso.

Então é isso, qualquer clamor popular, orquestrado por lobbies e interesses ainda não muito claros, é maior do que os protocolos clínicos, o parecer de comitês de ética e aprovação das agências reguladoras?

Alguém pensou que essa atitude pode colocar em risco pacientes extremamente vulneráveis, seja porque podem abandonar seus tratamentos seja porque colocarão suas últimas esperanças em um pseudo remédio que nunca passou dos primeiros testes experimentais? E isso em troca de quê? Alguns punhados de votos?

As perguntas são muitas, entre elas quem vai assumir a responsabilidade pelos pacientes que optarem por usá-la. Pela lógica, ao liberar uma substância não comprovada cientificamente, o governo assume a responsabilidade pelos desdobramentos, como uma piora do quadro de saúde do paciente –e, aliás, já existem relatos a respeito disso.

Às vésperas da abertura do processo de impeachment, a presidente Dilma não precisava de mais esse ato de populismo/oportunismo raso. Agora, nos resta o bom-senso dos médicos e dos seus conselhos em não prescreverem a substância. O Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de Sâo Paulo) deu o primeiro passo. No mês passado, orientou que médicos não receitem aos pacientes a fosfoetanolamina, sob risco de cassação do registro profissional. O CFM (Conselho Federal de Medicina) já se posicionou contrário ao uso da substância mas ainda não editou nenhuma resolução sobre isso. O que está esperando?

PS – Às 17h11 desta quinta, o CFM distribuiu nota à imprensa não recomendando a prescrição da fosfo.