stffonte: O Globo

Grupos que representam pacientes com doenças raras estão se mobilizando em torno de um julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) que pode afetar diretamente o tratamento de enfermidades desse tipo. Está nas mãos da Corte decidir se o poder público deve arcar com medicamentos de alto custo que não estão incluídos no Sistema Único de Saúde (SUS) e, ainda, determinar se é obrigação do Estado financiar remédios que não têm autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). A Associação Brasileira de Assistência à Mucoviscidose (Abram) estará, nesta terça, em Brasília, para tentar sensibilizar os ministros sobre o direito do acesso às medicações. Por outro lado, a Advocacia Geral da União alega que decisões judiciais envolvendo medicamentos caros podem desestabilizar o sistema de saúde.

O julgamento começou na quinta-feira passada, mas foi interrompido após um pedido de vistas do ministro Luís Roberto Barroso e deve voltar à pauta até o início de outubro. São dois recursos em análise. Num deles, o governo do Rio Grande do Norte questiona a obrigação de arcar com um remédio caro não listado pelo SUS. O outro foi impetrado por uma paciente que tentou acesso a um medicamento não autorizado pela Anvisa, mas teve o pedido negado pelo estado de Minas Gerais. Em seu voto, o relator do julgamento, Marco Aurélio Mello, decidiu que o poder público deve, sim, pagar pelo medicamento se ficar comprovada a imprescindibilidade do remédio e a incapacidade financeira do paciente e de sua família para obtê-lo. Mas ele também determinou que o poder público não deve ser obrigado a arcar com os custos de um medicamento que não tem o aval da Anvisa. Dez ministros ainda precisam declarar seus votos.

Os representantes da Abram querem entregar documentos de defesa da causa nos gabinetes dos 11 ministros, com dados não apenas sobre a mucoviscidose — mais conhecida como fibrose cística, distúrbio genético que afeta o pulmão e o sistema digestivo —, mas também com informações de outras associações que representam acometidos por doenças raras. Além disso, entidades como o Instituto Vidas Raras vêm fazendo campanha nas redes sociais, publicando depoimentos de pacientes com doenças pouco conhecidas que necessitam de medicamentos específicos. Segundo a Abram, todo o tratamento de fibrose cística custa cerca de R$ 30 mil mensais. Apenas um dos medicamentos custaria R$ 6 mil por mês.

— A única porta aberta, hoje, para nós é o Judiciário. O paciente está sendo fragilizado nesse processo e, pior, criminalizado por aqueles que afirmam ser essa demanda uma forma de onerar o Estado sem necessidade — desabafa o empresário Sérgio Sampaio, presidente da Abram, cujo filho, de 28 anos, tem fibrose cística. — Na espera de um registro na Anvisa, as pessoas vão a óbito. Defendemos que drogas não-experimentais, registradas por órgãos como o FDA (órgão que regulamenta alimentos e medicamentos nos Estados Unidos) possam ser requeridas por meio da Justiça no Brasil.

Os casos em julgamento no STF tratam de substâncias específicas — que, no decorrer dos processos, já tiveram autorização, respectivamente, da Anvisa e do SUS —, mas, como as análises receberam classificação de “repercussão geral”, as decisões da Corte em torno do tema determinarão uma orientação para outros casos semelhantes em instâncias inferiores. Em um dos processos, Carmelita Anunciada de Souza pediu ao governo potiguar medicamento para miocardiopatia isquêmica e hipertensão arterial pulmonar e conseguiu. Na outra ação, Alcirene de Oliveira exigiu do governo mineiro um remédio para doença renal crônica, mas não obteve a substância, porque o produto não era autorizado pela Anvisa. Os dois casos chegaram à mais alta corte do país por meio de recursos.

— Hoje, há decisões muito distintas pelo país, o Judiciário e a população precisam de um norte. O estado de Minas Gerais entende que há um grave risco para a saúde da pessoa o uso de um medicamento que não teve sua eficácia, segurança e qualidade comprovadas pela agência reguladora — afirma o procurador do estado de Minas Gerais Rafael Augusto Baptista Juliano.

Os estados são grandes interessados na questão da judicialização da saúde. Um levantamento da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma) analisou 9,6 mil ações judiciais impetradas para a obtenção de medicamentos em 2015 em quatro estados brasileiros e revelou que 33% foram contra os estados e outras 33% contra municípios. Já o Ministério da Saúde desembolsou, em 2015, R$ 1,2 bilhão por força de decisões judiciais.

Durante sua sustentação oral na sessão de quinta-feira passada no STF, a advogada-geral da União, Grace Maria Mendonça, disse que “a União defende que o planejamento e a organização do sistema sejam preservados, para que seja possível atender a coletividade” e que “não se está aqui, de forma alguma, desconsiderando as situações graves que atingem o cidadão brasileiro, mas o fato é que os recursos do Estado são limitados. É preciso ter uma forma sistematizada para atender a coletividade”.

Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Bioética da UnB, Volnei Garrafa defende que o Estado Brasileiro atue pela maioria:

— Se o sistema público não aprovou o medicamento, não tem que ser liberado. O FDA é americano, nós estamos na República Federativa do Brasil. Nem tudo que o FDA faz é bom para o Brasil — afirma Garrafa, também membro do Comitê Internacional de Bioética da Unesco.

A biomédica Miriam Figueira, de 28 anos, descobriu a fibrose cística tardiamente, aos 13 anos e, desde então, faz uso contínuo de um antibiótico inalatório para evitar infecções crônicas, uma das consequências da doença, que é genética e não tem cura. Segundo Miriam, a Anvisa liberou duas versões desse medicamento, porém depois de 10 anos de uso contínuo, as opções pararam de fazer o efeito desejado. Ela descobriu uma opção mais potente, já aprovada na Europa e nos Estados Unidos, e está há sete anos na luta pelo tratamento.

— Fiquei dois anos na Justiça brigando para ter acesso, consegui e agora de seis em seis meses tenho que recorrer de novo para continuar tendo acesso. Eu não quero ficar exigindo um remédio não aprovado, só que a empresa não tem interesse em aprovar no Brasil. Minha vida não pode esperar até a empresa ter interesse. A gente fica refém das indústrias e do governo — desabafa.

Rafael Torres Carneiro, de 27 anos, é formado em Direito e está estudando para concurso público. Por causa da fibrose cística, ele perde, em média, cerca de três horas de estudo por dia fazendo o tratamento necessário para conviver com a doença. Segundo ele, existe um remédio já disponível em diversos países, como os Estados Unidos, que resolveria esse problema, mas a droga ainda não passou pelo processo de habilitação da Anvisa, que dura cerca de três anos.

— O Orkambi diminuiria meu tempo de nebulização e a progressão da doença, que diminui minha capacidade pulmonar com o tempo. Eu ganharia uma sobrevida. O que o STF tem que entender é que esses remédios não são terapias alternativas nem pílulas milagrosas. São remédios testados por agências americanas, europeias com alta capacidade de estudo e de pesquisa.