fonte: Folha de SP
No beco, o esgoto corre a céu aberto. Há casas e porões sem janelas, com pouca iluminação e quase nenhuma ventilação. Entre os moradores, vários já tiveram ou ainda se tratam da tuberculose.
A 50 metros dali, na mesma rua 4, 144 famílias viviam na mesma situação até 2010. Após obras de urbanização do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), um trecho foi aberto e as casas precárias, demolidas.
Isso permitiu a entrada de luz solar e a circulação de ar nas novas moradias ali construídas. Antes conhecido como “beco da tuberculose”, o local praticamente zerou os casos da doença.
Os dois cenários estão na mesma Rocinha, a maior favela do Brasil, localizada na zona sul do Rio. Com população estimada em mais de 100 mil habitantes, ela tem uma das maiores taxas de incidência de tuberculose da América Latina (372 casos por 100 mil habitantes), índice 11 vezes maior do que o do Brasil (33,8 casos por 100 mil).
Doença contagiosa provocada por uma bactéria, a tuberculose é transmitida pelas vias aéreas e se dissemina facilmente em áreas com grandes aglomerações de pessoas, alta concentração de pobreza, ambientes sem entrada de luz solar e pouca circulação de ar.
A situação da doença e os desafios para o seu controle foi tema de um debate no congresso mundial de médicos de família (Wonca), que ocorreu no início do mês no Rio. O Estado do Rio concentra 68 casos de tuberculose por 100 mil, e a cidade, 89,7 casos.
Dados preliminares de um estudo da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) apresentado no evento mostram que as chances de cura da tuberculose aumentam em até 39% nas áreas cobertas pela Estratégia Saúde da Família (ESF) em relação àquelas sem cobertura.
“Os resultados demonstram que a expansão e consolidação da estratégia é o caminho para se alcançar a meta proposta pela OMS de eliminar a doença até 2035”, diz a infectologista Betina Durovni, subsecretária de atenção primária e vigilância em saúde do município do Rio.
Nos últimos sete anos, o índice de cobertura de saúde da família na cidade do Rio passou de 3,5% (em 2009) para 66% (até agora). O modelo, que acompanha hoje mais de 4 milhões de cariocas, se baseou em experiências de Portugal e da Inglaterra.
No caso da Rocinha, a incidência da tuberculose ainda é muito alta, mas já foi pior (455 casos por 100 mil habitantes em 2001). Houve avanço na taxa de cura, que passou de 66,1% em 2001 para 81,2% em 2013, e no índice de abandono do tratamento –de 18,2% para 11,6%.
O número de mortos pela doença caiu quase pela metade, de 51 (2005-2009) para 29 (2010-2015).
“A maioria dos casos hoje é diagnosticada precocemente e tratada na atenção primária. Antes, muitas pessoas descobriam a doença quando davam entrada em hospitais, em estágios mais avançados”, diz Marcos Goldraich, médico da clínica da família Maria do Socorro.
A unidade é uma das três de atenção primária na Rocinha, que também tem uma UPA (Unidade de Pronto Atendimento). Até 2010, só havia um centro de saúde.
“Não tenho a pretensão de acabar com a tuberculose, até porque a cura depende de outras áreas que não a saúde [infra-estrutura, saneamento]. A experiência da rua 4 mostrou isso”, diz Goldraich.
Hoje, a favela está dividida em 25 áreas e cada uma possui uma equipe de saúde da família, composta por um médico, um enfermeiro e seis agentes comunitários (todos moradores do lugar).
MULTIRRESISTÊNCIA
Elaine Gomes, 37, é uma das agentes. Ganha R$ 1.150 mensais por oito horas de trabalho diário por entre becos e vielas da Rocinha, acompanhando pacientes com tuberculose, hipertensos, diabéticos e gestantes de risco.
Na última sexta (18), a Folha acompanhou sua ida à casa do aposentado Roberto Ramos, 66, que tem tuberculose multirresistente, causada por bactérias que não respondem ao tratamento com as drogas convencionais.
O problema surge quando os pacientes não usam corretamente a medicação ou abandonam a terapia. Foi o que aconteceu com Ramos, que hoje toma 13 cápsulas de antibióticos por dia (no tratamento padrão, são quatro) sob supervisão de Elaine.
“Ele reclama da quantidade de remédio e dos efeitos colaterais [náusea e dores no corpo], mas a gente só sai de perto quando ele toma toda a medicação”, conta a agente, mãe de quatro filhos e avó de um menino de três anos.
Nascida e criada na Rocinha, ela decidiu ser agente comunitária depois que o filho teve diagnosticado um tumor cerebral e passou a ser acompanhado em uma das clínicas de família da favela.
“O cuidado e o carinho que recebemos não tem preço. Quis retribuir isso. Não há nada mais gratificante do que ver um paciente curado.”
Elaine lembra de um morador de rua com tuberculose que todos os dias desaparecia dos radar dos agentes. “Aquele que o encontrasse primeiro dava a medicação e avisava o resto da equipe por WhatsApp”, conta.
Há dois meses, exames apontaram que o morador está curado. “Fizemos até festa para comemorar.”
PRECONCEITO
“Não conte para a minha família ou para o meu vizinho que eu tenho tuberculose”. O pedido recorrente que os pacientes fazem a médicos e agentes da saúde expõe o estigma que envolve a doença.
“Atendi um paciente que só aceitou iniciar um segundo tratamento depois que garanti sigilo. Na primeira vez em que ele se infectou, os vizinhos queimaram a casa e as coisas dele”, conta o médico Marcos Goldraich, que atua numa clínica na Rocinha.
Um estudo da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) mostrou que os pacientes associam a doença fortemente ao estigma. Dentre os relatos, há casos de pessoas que esconderam o diagnóstico de familiares e de colegas de trabalho por medo de sofrer rejeição.
“A própria família, por ignorância, separa garfo, faca. Mas a transmissão não acontece assim. É pelas vias aéreas, pelas gotículas da tosse, do espirro. Precisa de um contato muito próximo”, diz Elaine Gomes, agente de saúde.
A doença tem cura em praticamente 100% dos casos novos desde que o tratamento seja feito de forma correta e até o final. Após 15 dias de terapia, o paciente não transmite mais a doença.