fonte: Folha de SP
O plano de Natasha Montero, no início de novembro de 2015, era chegar na maternidade, ter um parto normal, humanizado, abraçar o bebê e seguir feliz pela vida. Não foi tão simples.
Bento demorou 16 horas para nascer. Quando, finalmente, Natasha pôde pegá-lo nos braços, sentiu o bebê flácido, “molinho”, como descreve a mãe. Logo Bento foi entubado e transferido para a UTI. A explicação seria uma asfixia grave, sem razão aparente, ocorrida provavelmente durante o parto.
A estratégia escolhida para lidar com o caso, relata o neonatologista do Hospital e Maternidade Santa Joana Gabriel Variane, foi a hipotermia terapêutica.
“Na hora, mesmo sabendo que poderia estar acontecendo alguma coisa, eu achava que não era nada de mais. Depois de 15 minutos, meu marido voltou aos prantos e não quis me contar. Eu não entendia o porquê do choro”, conta a mãe.
A situação não estava favorável: no primeiro dia de internação, Bento teve uma convulsão –sinal de que algo não estava funcionando bem no pequeno cérebro do bebê.
No segundo dia, Bento sofreu uma parada cardiorrespiratória de 37 minutos, também em decorrência da asfixia.
Durante uma parada desse tipo, por mais breve que seja, há risco de haver sequelas neurológicas, já que o cérebro é particularmente susceptível à queda dos níveis de oxigênio e de glicose no sangue.
Se o cérebro de Bento já tinha sofrido com a convulsão, a falta de nutrientes poderia matá-lo. “Quando vi ele cheio de fios, caiu a ficha. Foi muito difícil. Na hora que recebi a notícia, perguntamos ao médico o que podia ser feito, e ele perguntou se a gente tinha religião. Eu disse que acreditava em Deus e ele disse: ‘Continue orando'”, diz Natasha.
FRIO PROTETOR
A hipotermia terapêutica tem um efeito neuroprotetor, ou seja, os neurônios sofrem menos com os possíveis danos decorrentes da resposta inflamatória do organismo.
Trata-se de um método de tratamento respaldado por estudos e profissionais da área, mas que ainda está longe de ter uma presença abrangente nos hospitais brasileiros, afirmam especialistas.
Segundo o neurologista Antonio Cezar Galvão, do Hospital 9 de Julho, se o paciente for bem selecionado, a técnica tem grande potencial de prevenção e atenuação de sequelas de paradas cardiorrespiratórias.
O problema é que a baixa temperatura prejudica a função de outros órgãos, como o próprio coração, daí a importância de o tratamento ser bem regulado.
Apesar das intercorrências, a resposta de Bento ao longo dos 15 dias de UTI foi surpreendente.
“Eu sei que ele poderia ter ficado em estado vegetativo. Depois, as enfermeiras me falaram que elas nunca viram um caso igual ao dele, em que o bebê não saísse de lá em estado muito comprometido”, conta Natasha.
Uma possível explicação para o sucesso da abordagem com Bento é a neuroplasticidade, ou seja, a capacidade de o cérebro “reinventar-se”, adquirindo novas características ou adotando novas estratégias para manter funções antigas.
Essa propriedade do cérebro tem potencial bastante grande em bebês e crianças, explica Galvão.
Em Bento, isso está mais do que demonstrado. Bento completou um ano de vida no último dia 3 de novembro. Depois de ser acompanhado de perto por uma neuropediatra, ele finalmente está de alta, sem necessidade de atenção especial ou de medicamentos, e, aparentemente, sem qualquer sequela ou prejuízo no desenvolvimento.
Após a experiência, Natasha largou o antigo trabalho e já planeja ter um novo bebê. “A gente vive esquecendo que a única coisa certa que existe na vida é a morte. Não tinha como eu ficar do mesmo jeito. Agora quero é cuidar dele, torná-lo um bom ser humano. A gente tem uma missão além de só trabalhar para consumir.”
Para Variane, a hipotermia terapêutica, assim como o monitoramento neurológico na UTI neonatal podem ajudar a evitar tanto mortes quanto casos de dano neurológico grave.
Estima-se que casos de asfixia somem 20 mil ao ano só no Brasil. De acordo com o médico Gabriel Variane, investir em abordagens como essa pode evitar tanto impactos sociais quanto econômicos (auxílios, tratamentos) decorrentes dos prejuízos neurológicos em bebês.