Autores:
Nairo M. Sumita – Diretor Científico da Sociedade Brasileira de Patologia Clínica/Medicina Laboratorial – SBPC/ML;
Wilson Shcolnik – Diretor de Acreditação e Qualidade da Sociedade Brasileira de Patologia Clínica/ Medicina Laboratorial – SBPC/ML.

O excesso de diagnósticos e de tratamentos (do inglês – “overdiagnosis and overtreatment”) ocorre em vários países, e pode representar ameaça ao bem estar de pacientes e prejuízos aos sistemas de saúde. Muitas definições para esses termos coexistem na literatura médica, mas o sentido prático é semelhante: é necessário avaliar os benefícios da realização de uma intervenção médica, considerando os riscos, a segurança do paciente e os danos envolvidos, incluindo os impactos financeiros.

Este tema, embora descrito como um fenômeno recente, já ocorre há séculos conforme evidências nos registros históricos. Nos dias atuais, alguns fatos nos ajudam a entender esta situação, quais sejam: a disponibilidade de tecnologias modernas; a medicina cada vez mais focada na especialização e na sub-especialização; os modelos de pagamento aos prestadores de serviço de saúde, nem sempre justos; a estrutura organizacional dos serviços de saúde que define a prestação do serviço de saúde, conforme a complexidade da doença, mas que na prática não é efetiva ; o uso do marketing; a relação desbalanceada entre a demanda e oferta; a mudança de papeis na relação médico paciente onde, não raramente, os pacientes manifestam o desejo de realizar algum procedimento médico ou diagnóstico, muitas vezes sem indicação e induzem os médicos as solicitarem mais exames do que o necessário. Todas estas questões, e muitas outras que não puderam ser citadas pela limitação de espaço neste artigo, potencialmente influenciam no processo de definição de uma política de saúde no país e, em última instância, na formação médica.

A literatura médica cita que 70% das decisões médicas se baseiam em resultados de exames laboratoriais, procedimentos considerados minimamente invasivos, que podem ser considerados como sendo a ferramenta de elevada relação custo/efetividade para se obter informações sobre o estado de saúde do paciente. Os resultados de exames laboratoriais fornecem informações que podem ser utilizadas para fins diagnóstico e prognóstico, prevenção e estabelecimento de riscos para inúmeras doenças, definição de tratamentos personalizados, assim como evitar a necessidade de procedimentos complementares mais complexos e invasivos, quando bem indicados e os resultados corretamente interpretados.

No Brasil, como em outros países, as despesas com exames laboratoriais representam menos de 5% dos custos com a assistência à saúde e 25% dos custos com diagnósticos. O número de exames laboratoriais realizados por paciente em diferentes países, assim como em diferentes regiões de um mesmo país, pode variar, como ocorre no Brasil. Muitas são as razões para a crescente demanda por exames laboratoriais: o interesse na prevenção das doenças e a busca por uma melhor qualidade de vida; o surgimento de novos exames laboratoriais com elevado poder para diagnóstico e estabelecimento de riscos; o envelhecimento populacional com consequente aumento da prevalência de doenças crônicas; a pressão/economia de tempo, que muitas vezes inviabiliza a conversa com o paciente e torna o exame clínico insuficiente; a padronização de protocolos clínicos visando definir a melhor forma de conduzir o diagnóstico e o tratamento das doenças; a insegurança ou a inexperiência dos profissionais que enxergam nos exames laboratoriais solicitados de modo não racional a possibilidade de se estabelecer maior número de diagnósticos; o desconhecimento do custo dos exames laboratoriais pelos solicitantes, o crescimento do número de beneficiários da saúde suplementar, com maior acesso quando comparados aos usuários do sistema público e a influência da mídia na discussão dos temas relacionadas a saúde e qualidade de vida.

Atualmente os exames laboratoriais baseados em métodos moleculares se transformaram na grande vedete, pois permitem, em muitas situações, a possibilidade de estabelecer diagnósticos precoces e precisos, antes mesmo que sinais ou sintomas resultantes das lesões orgânicas se tornem evidentes e realizam a detecção de doenças raras e de difícil diagnóstico, além de sua ampla utilização no aconselhamento genético e planejamento familiar. Exemplo prático é o uso cada vez mais frequente desses métodos em busca de mutações genéticas para o diagnóstico presuntivo de doenças graves que sequer se manifestaram, como o câncer de mama. Por outro lado, observa-se uma forte tendência a se criar a epidemia de doenças sem sintomas, definida apenas por alterações genéticas muitas vezes inespecíficas, na qual não é possível definir se a doença irá de fato se manifestar. Alguns protocolos de rastreamento levam ao extremo a necessidade do diagnóstico de “doenças” que não impactariam significativamente na saúde, e resultam em procedimentos investigatórios e tratamentos muitas vezes desnecessários, podendo trazer impactos para a segurança dos pacientes.

Os exames genéticos preditivos ainda representam desafios, pois além das incertezas quanto às ações apropriadas em casos de identificação de riscos para a manifestação de determinadas doenças, há questões éticas e de equidade, que envolvem a definição da terapia. Cabe lembrar que o Brasil ainda não dispõe de uma lei de confidencialidade genética, a exemplo dos Estados Unidos da América do Norte, fato que justifica a necessidade de uma grande discussão com a sociedade.

Há frequentes citações sobre o número de resultados de exames não acessados ou retirados por pacientes nos laboratórios clínicos brasileiros. Algumas delas afirmam que este número pode chegar a 30% sem, no entanto, citarem fontes. Os percentuais apurados por entidades setoriais revelam que este número não chega a 5% dos exames. Uma das explicações para tal diferença reside na desconsideração dos acessos a resultados de exames realizados diretamente por pacientes e médicos via internet, e ao uso de facilidades tecnológicas que permitem envio de resultados de exames por e-mail, mensagens por SMS, entre outras.

De qualquer forma, e diante do exposto, é necessário abordar a questão do desperdício e uso racional dos exames, evitando-se excesso de gastos e danos à população, e aos sistemas de assistência à saúde. Há pesquisadores empenhados na produção de estudos científicos que comprovem o real valor de cada exame laboratorial para uma assistência à saúde racional a um custo realista.

Entre os indicadores de qualidade laboratorial, já estão propostos alguns relacionados às escolhas apropriadas dos exames, para a situação clínica apresentada, assim como à correta interpretação e utilização dos resultados de exames no tempo oportuno. Em outras palavras, busca-se avaliar “o exame certo, realizado na hora certa, para a pessoa certa” e, para se obter tais informações, é fundamental um relacionamento muito próximo entre os profissionais de laboratório e os médicos assistentes para a melhoria da assistência à saúde da população. Outra proposta para conter o desperdício na área laboratorial é o gerenciamento da utilização de exames, com o objetivo de desencorajar o uso de exames supérfluos. Já há protocolos publicados em alguns países, definindo intervalos mínimos e condições em que os exames laboratoriais devem ser solicitados, baseados na clínica do paciente, no cenário da assistência à saúde e, principalmente, na probabilidade diagnóstica pré-teste do exame laboratorial solicitado.

Algumas soluções para evitar a realização desnecessária de exames já estão descritas, como, por exemplo:

  • Evitar o uso de requisições que estimulam a utilização de exames sem critério através da Implantação da solicitação computadorizada de exames;
  • A eliminação de exames obsoletos;
  • A instituição de algoritmos que orientem a sequência lógica de exames a serem utilizados, e os preparos pré-analíticos necessários;
  • A aproximação dos médicos solicitantes com os médicos patologistas clínicos, sendo estes Consultores e especialistas na correlação clínico laboratorial dos resultados;
  • Os sistemas de decisão clínica;
  • A introdução da disciplina de patologia clínica/medicina laboratorial no currículo do curso de graduação médica , entre outras.

A utilização dos registros eletrônicos em saúde (prontuários eletrônicos) representa a grande esperança para se evitar redundâncias, dada a possibilidade de fácil acesso aos resultados de exames previamente realizados. Já há algumas evidências de que as iniciativas citadas, se implementadas em conjunto, são mais seguras e efetivas, atendendo às necessidades econômicas e dos sistemas de saúde.

O risco do mau gerenciamento na utilização de exames pode levar a outros problemas de qualidade, como a persistência de sub-diagnósticos (falha na oferta de um exame quando este poderia produzir um resultado favorável para o paciente) e de sub-tratamentos. Para corrigir as distorções, ao invés da busca de culpados, é preciso o engajamento dos médicos para a busca de soluções que beneficiem os sistemas de saúde e, ao mesmo tempo, protejam os pacientes. A participação de entidades médicas na discussão desse assunto junto ao Ministério da Saúde e agências governamentais, como a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), a exemplo do que já ocorre com a Associação Médica Brasileira (AMB), por meio de abordagem baseada em evidências científicas que representem o estado da arte, é de fundamental importância para definir o que realmente traz valor e terá impacto positivo à assistência. A Sociedade Brasileira de Patologia Clínica / Medicina Laboratorial (SBPC/ML), como afiliada da AMB e atuante na área da patologia clínica e medicina laboratorial, tem consciência da importância da sua participação e não se omitirá na discussão deste tema.