fonte: O Globo
por Lígia Bahia
Instituições públicas responsáveis pela saúde existem para controlar, reduzir riscos ambientais e sociais e propiciar assistência a grupos populacionais e indivíduos desde o diagnóstico até a recuperação. No Reino Unido, o objetivo declarado do Sistema Nacional de Saúde é a atenção à saúde de alta qualidade para todos, no presente e nas futuras gerações. Os compromissos da administração pública francesa da saúde são a promoção da coesão social e da solidariedade. Países como o Canadá assumiram responsabilidades que incluem até a regulação da radiação emitida por telefones celulares. Um sistema de saúde se constitui a partir das respostas que oferece aos riscos e agravos e abrangência de suas atividades relativas à proteção de indivíduos e populações.
O Ministério da Saúde do Brasil é oficialmente um dos órgãos encarregados de assegurar qualidade de vida e assistência à saúde para toda a população. Bons objetivos saíram do papel com ministros e quadros profissionais competentes. A experiência internacional e nacional sugere que são dois os perfis adequados ao cargo. O eminentemente técnico e o político, sensível às especificidades da saúde, que convoca e valoriza os melhores especialistas. O atual ministro tem feição diversa. Além de nenhuma familiaridade com a área, loteou as principais estruturas do ministério com quadros de seu partido político, que, à imagem e semelhança do chefe, pouco entendem de saúde.
Entraram para o anedotário do país as proezas discursivas da invasão de uma organização, inerentemente conectada com a produção de conhecimentos científicos, por personagens que apoiam governos em troca de postos que rendem votos e negócios. As opiniões do ministro sobre as causas de problemas de saúde — “a obesidade infantil é motivada pelo fato de as crianças não terem a oportunidade de aprender a descascar alimentos com as mães”, “homens trabalham mais que mulheres e por isso não acham tempo para cuidar da saúde” — são similares às piadas baseadas na atribuição ao pobre da culpa pela pobreza. A constatação de que “o Aedes aegypti é indisciplinado”, na vigência da epidemia tríplice de dengue, zika e chicungunha, pertence ao gênero das frases irresponsáveis, incorretas, absurdas.
A justificativa para a escolha e continuidade do ministério leigo em saúde, mas perito em astúcias genéricas, é o “mal menor”. Entregar a Saúde para o Partido Progressista seria um preço barato para manter uma coalizão governamental sem apoio popular, mas que conta com a maioria dos votos do Congresso Nacional. Mas a administração de uma superdosagem de pragmatismo às instituições públicas de saúde não significa apenas permuta ocasional entre cargos e suporte político. Não saber identificar, equacionar e resolver problemas e não ter a quem recorrer induz ao raciocínio e convicção de que as alternativas e soluções inexistem. Ricardo Barros parece persuadido da inutilidade das ações de saúde pública, quando bate no peito e diz “sou ministro da Saúde, não sou ministro do SUS”, ao declarar que “sistema de saúde para todos é sonho e seus defensores são ideólogos” ou, ainda, decretando que “uma pessoa que tem um plano privado está contribuindo para o financiamento da saúde no Brasil, e como os planos terão menor cobertura, parte do atendimento continuará sendo feito pelo SUS”.
A ignorância sobre as causas dos problemas e das alternativas para reduzi-los, a pouca proximidade com as evidências sobre saúde e sistemas de saúde e o descrédito no SUS, combinados com muitas certezas sobre as melhores estratégias para alavancar uma carreira política, resultaram no uso e abuso do cargo para finalidades particulares. Em março, a Comissão de Ética Pública da Presidência da República advertiu o ministro por ter aproveitado a agenda oficial de trabalho para prometer a liberação de recursos em atos de candidatos a prefeitos em várias cidades do Paraná. Na semana passada, o diretor do Departamento Geral de Hospitais do Rio de Janeiro, indicado pelo ministro, foi afastado em decorrência de acusações de envolvimento com a operação Fatura Exposta.
Entre os afazeres do ministro em campanhas eleitorais e os relacionadas com a contratação de serviços desnecessários ou superfaturados, ainda sobrou tempo para apoiar as demandas de empresas de planos de saúde. Aumento de valores e obrigatoriedade de copagamentos, claramente associados com a piora dos padrões de qualidade dos serviços oferecidos, serão agora autorizados. Em meio à recessão, ao desemprego e às imensas dificuldades do setor, o relato debochado de Eliseu Padilha, a aplicação caricatural do termo notável à seleção de um quadro do PP que manteria a coesão da bancada perdeu literalmente a graça. Ricardo Barros é notável. Já fez por merecer o notório título de pior ministro da Saúde do Brasil de todos os tempos.
Ligia Bahia é professora da UFRJ