fonte: O Globo
por Dr. Alfredo Guarischi, médico
Quando criança, desejava ser bombeiro. Tornei-me médico e, para salvar vidas, algumas vezes tenho que apagar incêndios. Combati vários, tenho queimaduras, muitas não cicatrizadas, mas não vou desistir ou pedir para sair.
Por mais incômodo que seja, é fundamental estudar o erro humano e buscar respostas para entender como e por que bons e compromissados profissionais erram.
Olhando fora da caixa, venho aprendendo com as apurações de acidentes na aviação, forças especiais e bombeiros. Nesses sistemas, está claro que muitos fatores contribuem para o acidente, e a busca não é unicamente por culpados, pois inexiste uma única causa para o acidente, assim como inexiste acidente sem precedente.
Esse é um caminho para a prevenção de erros no sistema da saúde, pois a maioria dos eventos adversos decorre do julgamento humano (erros não intencionais). No entanto, quando há violação de uma norma estabelecida e correta, ficam caracterizados imperícia, negligência ou imprudência (erro judicializável).
Isso está ocorrendo com alguns gestores do Ministério da Saúde (MS), que afirmam que a asparaginase chinesa tem “a capacidade esperada de ação contra o câncer […] atestada por teste realizado pelo Instituto Nacional de Controle de Qualidade da Saúde da Fiocruz”. Essa afirmação é falsa. O laudo do INCQS/Fiocruz afirma que “a eficácia e segurança do produto são definidas somente através de estudo clínico”; e, num correto parecer, a direção da Anvisa declara que “a agência não possui as informações técnicas necessárias para emitir parecer conclusivo sobre o medicamento”.
Com a reação da comunidade científica independente, o MS quer mudar a legislação, para justificar o uso da asparaginase de origem chinesa, cinco vezes mais barata. Aplicá-la da forma proposta constitui uma experimentação que contraria o Código de Ética Médica.
O custo disso não será dimensionado imediatamente. O recente incêndio num edifício residencial em Londres, reformado um ano antes com material barato e inadequado, é ilustrativo. Tal escolha foi a principal responsável pela propagação do incêndio e morte de dezenas de moradores. Optando-se pelo menor preço, violaram-se regras de segurança, e, por ter começado no quarto andar, o sinistro impediu o resgate dos moradores, a maioria imigrantes, que estavam nos demais 16 andares acima.
Em Brasília, há um incêndio ético no MS. Possivelmente, começou na sala do ministro, no oitavo e penúltimo andar. A maioria dos que lá trabalham nada sofrerão, mas centenas de crianças pobres com leucemia “tratadas” de forma duvidosa padecerão nesse incêndio. A real dimensão e o número de vítimas só vão ser conhecidos daqui a um ou mais anos.
O Ministério Público Federal já identificou fumaça e labaredas no alto do prédio, mas é necessária a ajuda de toda a sociedade, para evitar mais uma tragédia na saúde pública.