fonte: O Globo

Cientistas da Faculdade de Medicina Albert Einstein, em Nova York, desenvolveram um novo composto que, em testes de laboratório, se mostrou capaz de induzir o “suicídio” de células cancerosas sem, no entanto, matar as saudáveis. A nova substância pode ser encarada como um passo promissor para a utilização desta estratégia em alguns casos de câncer, como a leucemia mieloide aguda, resistentes a tratamentos semelhantes atuais.

Segundo os pesquisadores, embora os experimentos com o composto, designado BTSA1, ainda estejam em fase muito preliminar, ele demonstrou tamanhas potência e seletividade no ataque a células deste tipo de leucemia nos testes pré-clínicos que deve ser alvo de mais estudos para ver se também funciona contra outros cânceres, inclusive tumores sólidos. Com isso, o composto pode levar ao desenvolvimento de fármacos e resultar em tratamentos mais rápidos e com menos reações adversas do que as quimioterapias tradicionais.

O novo composto tira proveito de uma capacidade natural de nossas células. Unidades básicas da vida, elas também podem ser o caminho da morte quando defeitos fazem com que não funcionem corretamente, como em diversos distúrbios genéticos, ou se multipliquem descontroladamente, característica marcante do câncer. Diante disso, as células também são equipadas com mecanismos de “autodestruição”, chamada apoptose, que são ativados em muitos destes casos.

O problema é que em vários cânceres as células doentes também passam a fabricar grandes quantidades de substâncias que “desligam” este sistema, chamadas antiapoptóticas, numa espécie de “cabo de guerra” molecular que permite que continuem a se reproduzir e se espalhar pelo organismo. O BTSA1 age estimulando a ativação de uma proteína, conhecida como BAX, que provoca o surgimento de buracos na membrana das mitocôndrias, as “usinas de energia” de nossas células, levando-as à morte. Assim, o novo composto basicamente faz a briga pender para o lado do “suicídio” nas células cancerosas, ao sobrepujar a capacidade delas de desativar esta proteína.

— Estamos esperançosos de que os compostos direcionados que estamos desenvolvendo se provem mais eficazes que as atuais terapias anticâncer ao levar as células cancerosas diretamente para a autodestruição — destaca Evripidis Gavathiotis, professor de bioquímica e medicina da faculdade americana e autor sênior de artigo sobre a pesquisa, publicado nesta segunda-feira no periódico científico “Cancer Cell”. — Idealmente, nossos compostos serão combinados com outros tratamentos para matar as células cancerosas mais rápido e mais eficientemente, com menos efeitos adversos.

Gavathiotis liderou um grupo de cientistas que, em 2008, descreveu a estrutura e formato da região que ativa a BAX. Desde então, ele e equipe lançaram mão de recursos da bioinformática para desenhar centenas de moléculas que se liguem a esta região, estimulando a ativação da proteína, na busca de uma estratégia para enfrentar o câncer. E, destas, a BTSA1 é a que se mostrou a mais poderosa até agora, com a vantagem adicional de se ligar preferencialmente a esta região da proteína nas células doentes, onde existe de forma isolada, do que nas saudáveis, onde ela se agrupa em pares, “escondendo” sua região de ativação.

— Nosso novo composto revigora as BAX suprimidas pelas células cancerosas ao se ligar com grande afinidade à região de ativação da proteína — resume o pesquisador. — Assim, a BAX entra em ação, matando as células cancerosas, enquanto deixa intactas as células saudáveis.

Longo caminho até aplicação clínica

Por enquanto, os cientistas testaram a ação do composto apenas em culturas de células de leucemia mieloide aguda na bancada do laboratório e enxertadas em camundongos. Nos experimentos com animais, os que foram tratados com o composto viveram significativamente mais (55 dias) do que os do grupo de controle (40 dias), que receberam só um placebo, sendo que em 43% deles não havia sinais da doença mesmo 60 dias após o enxerto.

Em humanos, a leucemia mieloide aguda é uma das formas mais agressivas de câncer no sangue, com apenas um em cada quatro pacientes alcançando uma sobrevida de 5 anos após o diagnóstico. Desta forma, apesar de ressaltarem que as pesquisas em torno da BTSA1 ainda são muito preliminares, especialistas consultados pelo GLOBO esperam que elas avancem rapidamente rumo a uma eventual aplicação clínica.

— O arsenal que temos contra este tipo de leucemia ainda é muito pequeno — conta Vilma Regina Martins, superintendente de Pesquisa do A.C. Camargo Cancer Center, em São Paulo. — Então, uma droga com este tipo de efeito é altamente cotada para seguir em frente com ensaios clínicos. Imagino que, diante destes resultados, ela em breve deve entrar nesta fase de testes clínicos, se já não estiver.

Opinião similar tem Jacques Tabacof, oncohematologista do Centro Paulista de Oncologia, do Grupo Oncoclínicas.

— O estudo é mais uma prova de conceito, então, para que isso chegue a um medicamento, temos um longo caminho pela frente — diz. — Ainda precisamos saber se o comporto terá o mesmo efeito em seres humanos in vivo, assim como qual a concentração dele que podemos usar de forma que mate o câncer sem ser muito tóxico para o paciente, entre outras questões. Todas essas respostas virão de um investimento muito grande em ensaios clínicos.

Tabacof destaca ainda que, historicamente, muitos conceitos e compostos inicialmente promissores nunca chegaram aos pacientes por causa destes problemas.

— Mas o conceito de explorar a apoptose para combater o câncer é muito interessante. E como a desativação da via BAX é um mecanismo comum a vários tipos de câncer, são grandes as chances desta abordagem beneficiar muitos pacientes, não só de leucemia como também de tumores sólidos.