fonte: O Globo

A médica M. atendia um menino de 10 anos em uma Clínica da Família no Complexo da Maré, na Zona Norte, quando rajadas de tiros foram dadas na direção da unidade — um caveirão da PM estava parado em frente ao local. Ela se jogou ao chão com o garoto, que não parava de chorar. Enquanto tentava acalmá-lo, M. se tocou que o pequeno paciente tinha a mesma idade de seu filho e o abraçou. E, em meio à situação de desespero, uma bala de fuzil caiu a poucos centímetros dos dois.

Foi o segundo tiroteio enfrentado pela médica na clínica, onde trabalha há apenas oito meses. Acabou testemunhando mais dois. No início do ano, quando acertou sua ida para a unidade, um funcionário da Secretaria municipal de Saúde lhe disse: “Fique tranquila, é um lugar seguro”.

— Tive, com aquele menino, uma experiência que nunca vou esquecer. Quando parei o carro no meu prédio, não consegui sair. Fiquei meia hora na garagem, paralisada — recordou M.

Médicos e enfermeiros que falaram com o GLOBO sob condição de anonimato disseram que trabalhar em áreas conflagradas exige mais que competência e dedicação. É preciso ter, acima de tudo, coragem. Buscar refúgio e proteger pacientes durante confrontos virou uma rotina em várias comunidades. A prefeitura estima que, de janeiro a setembro deste ano, metade das 231 unidades de atenção primária, como Clínicas da Família e Centros Municipais de Saúde, teve que suspender o atendimento por causa da violência.

Essas paralisações, que aconteceram em 115 unidades, muitas vezes foram parciais, breves, porém houve situações graves. Em alguns casos, funcionários tiveram de cumprir a difícil tarefa de dispensar doentes e fechar as portas. Foi o que aconteceu na Clínica da Família da Vila do Pinheiro, na Maré, perfurada por tiros durante um confronto entre policiais e traficantes no dia 26 de setembro. No domingo passado, uma UPA da mesma região foi invadida por dezenas de bandidos, que buscavam atendimento a um criminoso baleado.

Alegando motivos de segurança, a Secretaria municipal de Saúde não divulga os nomes e a localização das unidades atingidas pela violência. O órgão diz apenas que, contabilizado o tempo de serviços suspensos, a unidade mais afetada por tiroteios passou o equivalente a um mês de portas fechadas. Foram, ao todo, 34 dias de atendimento paralisado.

As Clínicas da Família só funcionam em horário integral de segunda a sexta-feira. Aos sábados, seus funcionários trabalham em meio expediente. A unidade que ficou em segundo lugar no ranking da violência fechou 30 vezes ao longo de nove meses. Quando isso acontece, significa que o nível de insegurança chegou ao ponto mais crítico. A classificação “vermelha” é a mais extrema de três padrões de risco. A “amarela” indica que há tiros ou operação nos arredores, já a “verde”sinaliza que é possível funcionar normalmente, inclusive com atividades externas.

Levando em conta as classificações “vermelha” e “amarela”, houve uma unidade que chegou a fazer notificações desses dois padrões de risco 179 vezes este ano. A segunda colocada nesse ranking foi afetada em 105 ocasiões.

De olho em aplicativo

Na clínica em que M. trabalha, a sala de acolhimento agora funciona num auditório. Médicos e enfermeiros chegaram à conclusão que o espaço original era muito vulnerável — uma bala atingiu a poltrona de uma funcionária alguns segundos depois de ela ter saído dali.

— Uma bala de revólver é capaz de cruzar a clínica de ponta a ponta. A estrutura não suporta tiros. Mesmo que a gente se deite no chão, corre risco — afirmou M., acrescentando que não há paredes de concreto no local.

Durante a entrevista ao GLOBO, M. pegou seu celular pelo menos três vezes para olhar o WhatsApp. Checar toda hora o aplicativo não é um vício, mas uma questão de segurança: colegas de trabalho e líderes comunitários se comunicam e alertam sobre eventuais riscos, como a chegada de um caveirão da PM. No dia anterior, ela e os colegas ficaram em meio a um tiroteio. Muitas vezes, bastam alguns segundos para que o recebimento de uma mensagem seja seguido por uma troca de tiros. M. se acostumou a consultar o grupo antes de sair para trabalhar, por volta das 5h. Preocupada, a família da médica a pressiona para que deixe o cargo.

— Já pensei em desistir, mas a gente vai tentando levar com o restinho de esperança que tem. Eu faço o que amo. Se sair daqui, vou ter que seguir outra carreira — desabafou M.

Em algumas favelas, contatos com o tráfico de drogas são uma necessidade para funcionários de unidades de saúde. M. contou que, depois que um criminoso com um fuzil entrou em sua clínica para um atendimento de emergência, bandidos da região se comprometeram a tomar cuidado para não colocá-los en risco.

Em outra unidade, situada numa favela com UPP, há uma sala de consultas reservada para integrantes do tráfico, de acordo com a jovem médica X. Eles não precisam esperar como os demais pacientes: basta um bandido entrar para ser imediatamente atendido.

Há menos de um ano trabalhando no local, X. teve que se abrigar quatro vezes durante tiroteios. Na primeira, estava atendendo uma idosa quando rajadas soaram com força ao lado do consultório.

— Na sala onde todos se abrigaram, uma enfermeira chorava sem parar ao meu lado, e um dentista sofria uma crise de hipertensão — lembrou a médica.

X. contou que, pouco antes de começar a dar expediente na unidade, seus colegas ficaram quase quatro horas trancados, sem poder ir para casa, por causa de um tiroteio. Para ela, manter a calma ao passar por criminosos com armas na cintura ainda é um desafio:

— Já fiz visita domiciliar com a clínica funcionando em alerta amarelo, com bandidos entocados em vários lugares da comunidade — disse X.

Foi justamente de uma visita domiciliar que a médica recém-formada P. guarda a pior lembrança dos meses em que trabalhou como estagiária numa Clínica da Família numa comunidade com UPP na Zona Norte. No momento em que chegava à casa de uma paciente, a tranquilidade que reinava na favela deu lugar a uma troca de tiros. Uma moradora, que estava perto da equipe de saúde, foi atingida por uma bala.

—Estávamos no meio de uma rua quando começou um confronto. Havia idosos conversando na calçada, gente lavando carro, comércio funcionando — recordou P. — Aquela mulher levou um tiro a poucos metros de mim.

Hoje, a médica trabalha numa outra Clínica da Família, localizada em um acesso a uma comunidade sem UPP, onde passou a encontrar mais bandidos armados.

— Você anda dez metros e vê um cara de fuzil. Eles não mexem com o pessoal da clínica, mas me sinto muito desconfortável — contou P.

A ONG Viva Rio, que administra Clínicas da Família dentro de comunidades, substituiu a segurança armada, terceirizada, por porteiros. Muitos são moradores das favelas nas quais as unidades funcionam.

— Usamos a mesma estratégia dos agentes comunitários de saúde, que conhecem os territórios e as pessoas. Eles ajudam na composição de cenário de risco. Sabem quando a situação ficará instável — afirmou Ubiratan Ângelo, ex-comandante da PM e diretor de segurança da ONG. — Ter pessoas armadas nesses locais só a aumenta a insegurança.

Em algumas favelas com clínicas e centros de saúde, a violência afugenta a mão de obra. Uma médica recém-formada disse que conseguiu ser contratada numa unidade depois que uma profissional com quem disputava a vaga teve o carro alvejado durante a entrevista de emprego.

A violência não provoca apenas a suspensão dos atendimentos: levou ao fechamento da Clínica da Família das Palmeiras, que funcionava junto a uma estação do teleférico do Complexo do Alemão. No dia 5 de dezembro do ano passado, a enfermeira P. subiu o morro sem saber que seria seu último dia de trabalho. Policiais de uma UPP invadiram a clínica e se posicionaram nas janelas para abrir fogo contra criminosos.

— Usaram nosso local de trabalho para atirar. Dentro da clínica, o barulho dos disparos era ensurdecedor. E fomos tratados como bandidos, os policiais nos proibiram de pegar celulares — disse P.

No dia seguinte, nenhum funcionário conseguiu subir o morro para trabalhar. Desde então, a clínica, que atendia 9.600 pessoas por mês, nunca mais abriu.