fonte: O Globo

por Lígia Bahia

Mudou o ano, mas não a situação de saúde. À estrutural penúria operacional de unidades públicas somaram-se dois novos problemas assistenciais. A irregularidade, e mesmo suspensão, do pagamento de salários para profissionais de saúde da atenção básica e a sugestão de fechamento de vagas para residência médica em hospitais universitários do Rio de Janeiro. Sob exame superficial, esse conjunto de disfunções tem o diagnóstico de falência múltipla do SUS. Mas não é bem assim, existem órgãos saudáveis. O prognóstico é preocupante, porém incerto. É difícil formar bons médicos em país periférico sem um sistema público vigoroso. Mas seria pior ainda se não houvesse excelentes mestres e pesquisadores. Um médico precisa adquirir habilidades práticas e ser capaz de interpretar, refletir e decidir.

Redes assistenciais precárias comprometem o treinamento assistencial. Contudo, maus exemplos de condutas, inexistência de laboratórios de investigação científica e professores ruins prejudicam o discernimento clínico e ético dos futuros profissionais. As universidades públicas concentram um corpo docente qualificado e atividades de pesquisas essenciais para a formação de médicos. Como a história da união do ensino médico às Ciências Biológicas das instituições acadêmicas foi longa e acidentada, o divórcio é possível. Até hoje há por aí quem não entendeu a importância ou discorda da necessidade de conjugação do ensino da clínica com a fisiologia, bioquímica, histologia, anatomia patológica e bacteriologia.

Nos EUA, antes da Guerra Civil, o ensino superior era considerado medíocre em termos intelectuais e destituído de estímulos ao pensamento e investigações originais. Escolas médicas admitiam estudantes com preparação mínima, o curso era muito breve e a remuneração dos professores tinha como fonte o pagamento direto dos alunos. A ruptura com o modelo de separação entre o ensino e a ciência ocorreu no final do século XIX. As universidades Harvard e Jonhs Hopkins estenderam o período de aprendizado, recrutaram pesquisadores, passaram a pagar salários para os professores, construíram hospitais e organizaram os primeiros programas de residência médica. Nos anos 1910, foram fechadas inúmeras escolas americanas classificadas como comerciais. Os requerimentos de inclusão de ciências básicas nos cursos médicos impuseram custos mais elevados e estimularam as instituições financiadas por meio de recursos públicos e vultuosas doações privadas.

De acordo com a legislação vigente, o Brasil terá mais dez mil médicos em 2020. As novas vagas para graduação estão, majoritariamente, alocadas em escolas médicas recém-abertas. Estamos diante do aumento expressivo e cumulativo de entrada de médicos no mercado de trabalho e de inúmeras constatações de falhas na formação, especialmente nas faculdades desvinculadas de instituições de pesquisa. A residência médica, financiada precipuamente com recursos públicos, tem sido um espaço relevante para buscar-se um equilíbrio, ainda que sempre provisório, entre a racionalidade comercial de faculdades privadas e a qualidade da formação dos médicos. Precisamos de mais vagas para a residência médica, e os técnicos do MEC sabem disso. É um contrassenso sugerir o fechamento de programas públicos de pós-graduação em um contexto do aumento de vagas para graduação em instituições destituídas de pesquisas biomédicas.

“Avaliadores de risco” brasileiros aqui estudaram e, neste território, foram selecionados pelo MEC para estabelecer critérios que determinam a alocação de verbas governamentais. Portanto, não deveriam se surpreender com a decadência de universidades públicas. Os cortes de recursos têm consequências objetivas. A sugestão, felizmente revertida, de rebaixamento de um hospital do MEC por uma comissão do próprio MEC é completamente incoerente. Quem são os responsáveis pelo funcionamento inadequado de um hospital do Ministério da Educação? Em meio ao incipiente, confuso e desinformado debate sobre a graduação, residência e autorização para o exercício da medicina, uma instituição pública não deve se apresentar como uma agência de risco estrangeira e renunciar de sua função de regulação da formação médica. As soluções apresentadas por entidades médicas e investidores do mercado são antagônicas. As primeiras querem menos médicos e, os últimos, o retorno das velhas escolas comerciais, ou seja, mais médicos.

É preciso encontrar políticas de mediação entre os possíveis defeitos aristocráticos daqueles que reivindicam o ensino em poucas instituições comprovadamente excelentes e o desejo de lucro e prestígio social e político dos que apostam na privatização. A concentração de cursos de graduação e pós-graduação públicos em grandes metrópoles e a autorização de cursos privados com mensalidades elevadas pagas pelas famílias não atendem às necessidades de formação, capacitação permanente e distribuição geográfica de bons profissionais médicos. As alternativas mais racionais são baseadas na divisão hierarquizada de atribuições entre o público e o privado. Evidências e experiências internacionais indicam que hospitais universitários continuam sendo instituições muito influentes para a qualidade do ensino médico e que é mais fácil reabrir leitos públicos do organizar, manter e expandir a infraestrutura para pesquisa básica.