fonte: O Globo
Moradora de Mesquita, a faxineira Catarina da Silva, de 59 anos, usa as redes sociais para pedir doações e ajuda financeira para tratar um câncer, diagnosticado em 2013, que começou no fígado e chegou a outros órgãos. A luta contra uma doença grave ganhou contornos ainda mais dramáticos porque ela não conseguia marcar exames e consultas na rede pública de saúde. Depois de um ano, amigos pagaram para que ela fizesse uma eletroneuromiografia para avaliar a origem de fortes dores pelo corpo. Apos alguns meses, ela recorreu à Defensoria Pública Federal para tentar, ao menos, ser vista por um especialista. Agora, é atendida numa clínica particular da Baixada. Não bastassem seus problemas, Catarina teve que reunir forças para cuidar da filha, Josiane, que, em fevereiro de 2017, teve um AVC hemorrágico e desde então não recobrou a consciência. Mais uma vez, ela se viu às voltas com as agruras para conseguir atendimento médico no Rio.
— Há três meses, os exames que ela precisava foram feitos. Mas, até agora, não conseguimos um neurologista para avaliar o quadro e indicar o tratamento ideal. Vivemos com dificuldades. Ela me deu um neto e duas netas. Foi preciso que o menino, agora com 18 anos, fosse morar com o pai, porque não tenho condições financeiras para manter todos — disse Catarina.
EM MARÇO, FILA CRESCEU 59,7%
Mãe e filha estão longe de serem exceções. Dos exames mais básicos aos serviços de saúde mais complexos, as filas se multiplicam. Na Região Metropolitana do Rio, 228 mil pacientes — dos quais 214 mil apenas na capital — estão cadastrados no chamado Sistema de Centrais de Regulação (Sisreg) à espera de consultas, exames e cirurgias de baixa complexidade. Os dados indicam que, na capital, houve em março um crescimento de 59,7% do número de inscritos na fila, em comparação com dezembro de 2016, quando 134 mil pessoas aguardavam pelos procedimentos. No extremo dessa fila virtual, o tempo de espera por uma simples consulta oftalmológica pode chegar a 681 dias, quase dois anos.
Em média, na cidade do Rio, o paciente da rede pública leva mais de três meses para ser avaliado (99 dias) e 34 dias para realizar exames, que podem, ou não, apontar a necessidade de cirurgias. Se uma intervenção for indicada, será preciso voltar à fila para agendá-la. As estatísticas são da própria Secretaria de Saúde da prefeitura, que administra o Sisreg.
Enquanto as filas aumentam, a oferta de vagas para pacientes cai, puxada pelas unidades da prefeitura. Um estudo do Fórum de Saúde, com base em dados oficiais do próprio município, mostra uma redução na quantidade de procedimentos entre fevereiro de 2017 e o mesmo mês deste ano. O total de ultrassonografias, por exemplo, caiu de 21.170 para 13.667, ou 35,4% a menos. O número de cirurgias foi reduzido em 49,8%: de 47.214 para 23.717. Detalhe: os dados incluem as operações de emergência. Outro indicador preocupante revela que, em março, a rede municipal fez menos um milhão de procedimentos em relação a março de 2017.
— Em 2017, o Hospital Ronaldo Gazolla (Acari) cortou 150 pessoas de uma equipe de 1.300. Já o Hospital da Piedade fechou 45 leitos (30%). São apenas dois exemplos. Os cortes de verba também obrigaram as clínicas da família a reduzir os procedimentos. Isso se reflete nas estatísticas — diz o médico Carlos Vasconcellos, integrante do Fórum de Saúde.
Entre as poucas exceções na queda de produtividade estão as cirurgias de catarata. Os indicadores, porém, estão bem abaixo da meta anunciada pelo governo, de fazer 3.104 intervenções por mês. Embora tenham sido eleitas prioridade, aumentaram de 22 para 117, comparando-se março do ano passado e deste ano. Ainda é muito pouco.
Os recursos estão minguando, o que indica que o cenário é desolador.
— Em 2017, a prefeitura deixou de aplicar R$ 400 milhões do orçamento da saúde (R$ 5,4 bilhões). Esse quadro pode piorar por falta de recursos. Este ano, R$ 600 milhões da verba já foram bloqueados. Além disso, há problemas em outras redes. Nas unidades federais, foram fechados leitos, e especialistas não têm sido repostos — disse o vereador Paulo Pinheiro (PSOL), da Comissão de Saúde da Câmara.
Segundo dados oficiais, apenas nas redes federal e municipal, a carência de profissionais chega a 5.149. Nos seis hospitais da rede federal, faltam pelo menos 3.592 médicos, enfermeiros, além de outros profissionais. Entre os que estão em dificuldades, há unidades de referência como os hospitais de Bonsucesso, de Ipanema e Cardoso Fontes. O Ministério da Saúde planeja completar os quadros recrutando pessoal em contratos temporários (por até dois anos), mas não informou quando isso acontecerá.
A falta de pessoal em unidades de referência é um dos motivos para o aumento do tempo de espera no Sistema Estadual de Regulação (SER), que gerencia as vagas de média e alta complexidade. Uma das preocupações hoje é com a área de oncologia. Em um ano, o tempo de espera por um exame de mama, por exemplo, passou de dez para 42 dias. Há ainda outros fatores. Em setembro de 2017, depois que uma clínica particular deixou de atender pacientes pelo SUS, o sistema perdeu 195 vagas por mês para exames e tratamentos de câncer.
Na prefeitura, a carência é de 1.557 profissionais na rede básica e nas oito policlínicas que oferecem exames de especialidades como ginecologia, cardiologia, dermatologia, endocrinologia e ortopedia. Restrições orçamentárias são o principal empecilho para que esses quadros sejam preenchidos. Desde abril de 2017, a prefeitura ultrapassou o limite de alerta para gastos com pessoal pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), o que dificulta a realização de concursos. Enquanto isso, os pacientes sofrem.
— Aguardo há cinco anos para extrair uma pedra da vesícula. No período, fiz exames pré-operatórios duas vezes, mas eles perderam a validade. Essa espera é incompreensível. Sofro muitas dores, principalmente à noite. Quase não durmo — diz o serralheiro André da Silva Castilho, de 41 anos.
CIRURGIA DE CRIANÇAS PARA NA JUSTIÇA
A desempregada Rosângela Marques Fernandes, de 52 anos, é outra que convive com dores frequentes, também causadas pela vesícula, que não pôde operar até hoje. Indignada, ela diz que a espera já chega a quatro meses:
— É um desrespeito. Quando estou em crise, sinto muita dor perto das costelas. Nem consigo ficar de pé.
Com a crise econômica, a classe média passou a pressionar as redes públicas. A bioquímica Rafaela Kowalski, de 34 anos, moradora da Ilha do Governador, é uma das muitas pessoas que não podem mais arcar com as despesas de um plano de saúde particular.
— Há meses tento agendar um exame de monitoramento de hipertensão. Estou desempregada e não tenho condições de pagar na rede particular — afirma Rafaela.
Em nota, a SMS confirmou que o contingenciamento afetou os serviços da rede. Mas alegou que, proporcionalmente, o ano de 2017 foi o que mais investiu recursos (25,71% do orçamento) enquanto a legislação exige que sejam aplicados 15%. Sobre a limitação de verba, a secretaria informou que gastou R$ 4,9 bilhões dos R$ 5 bilhões disponíveis no ano passado. “O valor não executado (R$ 100 milhões) refere-se a recursos do SUS repassados após fechamento do orçamento que serão aplicados em 2018”, disse. Sobre a queda de produtividade apontada pelo Fórum de Saúde, argumentou que os dados estão sujeitos à revisão. Segundo a prefeitura, as unidades têm 60 dias, após o fechamento do mês, para rever os dados inciais, quando então a análise pode ser feita.
A subsecretária de Regulação, Controle, Avaliação, Contratualização e Auditoria da SMS, Cláudia da Silva Lunardi, nega que questões financeiras estejam alongando as filas. Segundo ela, no ano passado, a prefeitura reviu as regras que disciplinam a fila para fazê-las andar. Ela, no entanto, reconhece que há gargalos, principalmente, por carência de pessoal nas policlínicas municipais.
— A rede pública não funciona de forma realmente integrada. A consequência é o agravamento do quadro clínico dos pacientes enquanto as filas crescem — critica o presidente do Cremerj, Nelson Nahoun.
Muitas vezes, os casos vão para o balcão da Justiça. Na semana passada, a Defensoria Pública Federal entrou com uma ação exigindo um plano para a redução das filas de cirurgias cardíacas infantis em 60 dias, da União e do governo estadual. Em 2016, o Cremerj constatou que 200 crianças esperavam atendimento no Instituto Nacional de Cardiologia Laranjeiras, que tinha seis de 24 leitos fechados. Já o Instituto Estadual de Cardiologia Aluísio de Castro tinha insuficiência de pessoal em 12 de 15 especialidades.