fonte: Folha de SP
por Cláudia Colluci
Quase meio século atrás, o médico inglês Julian Tudor Hart publicou um artigo antológico no periódico científico The Lancet em que descreve a sua “lei dos cuidados inversos”. Em resumo, ele diz que os que mais necessitam dos serviços de saúde são os que menos têm acesso a eles.
Hart, pioneiro da atenção primária de qualidade, morreu no fim de semana aos 91 anos. É tido como o primeiro GP (clínico geral ou médico de família) na Inglaterra a monitorar rotineiramente a pressão arterial dos seus pacientes, independentemente dos sintomas. Com isso, reduziu em 30% as mortes prematuras por doenças relacionadas à hipertensão.
Lendo o artigo de Hart, fico pensando como o tema das desigualdades em saúde continua tão universalmente atual. Ele escreve, por exemplo, que os serviços médicos não são os principais determinantes da mortalidade ou morbidade de uma população. “Esses dependem mais dos padrões de nutrição, moradia, ambiente de trabalho e educação, e da presença ou ausência de guerra.”
Também descreve um cenário bem conhecido pelos médicos do SUS no Brasil: “Em áreas com maior número de doenças e mortes, os médicos generalistas têm mais trabalho, listas maiores, menos apoio hospitalar e herdam tradições de consulta clinicamente mais ineficazes do que nas áreas mais saudáveis. E os médicos dos hospitais suportam cargas de casos mais pesadas, com menos pessoal e equipamento, edifícios mais obsoletos e sofrem crises recorrentes na disponibilidade de leitos e pessoal.”
Defensor ferrenho do NHS (sistema público de saúde inglês no qual o SUS foi inspirado), ele dizia que os bons cuidados de saúde eram um direito de todos, mas que os serviços só podiam ser de fato direcionados aos mais necessitados se o sistema de saúde estivesse livre das influências do mercado e se concentrasse apenas no bem-estar dos pacientes.
Hart trabalhou durante 30 anos como clínico geral e depois se dedicou a pesquisas epidemiológicas. Em 2006, foi premiado com o Discovery Prize como “um clínico geral que conquistou a imaginação de gerações de GPs com sua pesquisa inovadora”.
Na época, Graham Watt, professor de clínica geral na Universidade de Glasgow, discursou: “Suas ideias e exemplos permeiam a prática geral moderna e permanecem na vanguarda do pensamento e prática sobre a melhoria da saúde na atenção primária. Seu trabalho sobre hipertensão mostrou como registros de alta qualidade, trabalho em equipe e auditoria são as chaves para a melhoria da saúde.”
Em sua página no Facebook, o médico de família Gustavo Gusso homenageou o mestre e fez uma provocação: “Faleceu Julian Tudor Hart aos 91. Um dos maiores médicos de família de todos os tempos que descreveu a Lei de Cuidados Inversos: quem mais precisa é quem menos recebe. Simples assim. Na prática, bastante complexo. Quem quer atender desdentado, descuidado e desobediente?”
Reproduzo a provocação: quem, senhoras e senhores?