fonte: Folha de SP
Diante do encolhimento dos planos de saúde devido à crise econômica e da farta mão de obra médica à disposição, as chamadas clínicas populares, que oferecem consultas a partir de R$ 20, proliferam-se pelo país.
Em um cenário de competição acirrada, esses estabelecimentos recorrem a estratégias que incluem convênio com torcida organizada de futebol, patrocínio a times de várzea e propaganda com celebridades como a cantora Gretchen.
Eles também permitem parcelamento e até desconto em conta de luz e ofertam um leque variado de opções, como atendimentos de 15 minutos e oferta de médico de família.
Em comum está o público. Ele, em regra, é composto em parte por clientes insatisfeitos com o SUS (Sistema Único de Saúde) e em parte por pessoas que perderam o convênio médico nos últimos anos —caso de cerca de 3 milhões de brasileiros desde 2014.
A fuga dos planos de saúde, além de impulsionar esse mercado, elitizou o perfil dos frequentadores de alguns dos estabelecimentos. Um exemplo é a rede Dr. Consulta, uma das pioneiras no setor.
Criada em 2011, com a primeira unidade na favela de Heliópolis, a empresa tinha quatro centros médicos em 2014. Neste ano, vai terminar com um total de 79. Parte deles fica na periferia, mas outros em áreas valorizadas de São Paulo, como a avenida Nove de Julho, no trecho dos Jardins, e a avenida Rebouças.
“Hoje, 57% do nosso público é da [classe] A e B”, afirma Renato Velloso, vice-presidente de Desenvolvimento e Novos Negócios da rede.
O potencial desse mercado tem atraído investidores de fora do universo da saúde, como o empresário Roberto Justus. Em sociedade com Ruy Marco Antonio, ex-proprietário do Hospital São Luiz, ele abriu no ano passado a clínica Megamed.
Com condições especiais para torcedores da Gaviões da Fiel, a organizada do Corinthians, a clínica tem duas unidades na zona leste de São Paulo e pretende inaugurar franquias no interior paulista e em outros estados.
Além de pessoas físicas, aposta em parcerias com empresas que não pagam plano de saúde, mas querem oferecer algum benefício aos funcionários, ou com grupos de trabalhadores autônomos, como motoristas de um determinado ponto de táxi, de acordo com Vania Cardoso, diretora-geral da Megamed.
Grandes empresas também decidiram entrar no segmento. Em março deste ano, a Amil obteve aprovação do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) para abrir, junto com o grupo Dasa de diagnóstico, uma rede de clínicas voltada ao público de menor poder aquisitivo.
Pioneira no mercado, a Clínica Fares, com três décadas de existência, anunciou a inauguração de 20 unidades novas com linha de crédito do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social).
Uma das clientes, a autônoma Flávia Mendes Baptista, 43, conta que decidiu fazer fisioterapia no local depois de experiências como a de ficar três horas em pé com o tornozelo fraturado em hospital público —e não conseguir atendimento. Sem condições de pagar um plano, optou pela clínica após saber que poderia parcelar seu tratamento em até dez vezes.
Na contramão do modelo de consultas rápidas, uma nova rede aberta na semana passada, a Amparo, aposta na medicina de família. Pelo sistema, ela promete que o paciente terá o acompanhamento de um mesmo médico generalista, evitando idas desnecessárias a especialistas.
Independente do modelo, o mercado se beneficia da expansão dos cursos de medicina, que ampliou a força de trabalho disponível, diz Mário Scheffer, professor da Faculdade de Medicina da USP. De 2010 a 2017, o número de registros médicos aumentou 23%, enquanto a população brasileira cresceu 9%.
SEM TRATAMENTO COMPLETO, CLÍNICAS TÊM IMPACTO NO SUS
Cliente da rede de centros médicos Dr. Consulta, Lais Pincheski, 21, já teve plano de saúde e depois foi para o SUS, mas se decepcionou com a dificuldade de obter atendimento na rede pública. “Em posto de saúde agora só vou para tomar vacina”, diz.
Pode ser assim no caso dela, mas não é a regra entre pacientes de clínicas de baixo custo. Quando precisam de cirurgias e tratamentos mais complexos e caros, boa parte recorre ao SUS —e, para isso, muitas vezes, tem que refazer todo o caminho de consultas primárias na rede pública.
Esse é um dos motivos pelos quais esses estabelecimentos populares deveriam ser alvo de maior regulamentação, segundo avaliação de Mário Scheffer, professor da USP.
Como as clínicas não são planos de saúde, não são fiscalizadas pela ANS (agência nacional de saúde suplementar).
Uma das poucas regulações sobre o tema é uma resolução recente do Conselho Federal de Medicina, que, entre outras regras, veta promoções como cartões de fidelidade nas clínicas e afirma que só se pode divulgar valores de procedimentos dentro das unidades —o que nem sempre ocorre.
Com a regulação fraca, clientes se surpreenderam quando a rede Dr. Agora fechou, no ano passado, suas clínicas que funcionavam em algumas estações do metrô de São Paulo.
Pacientes que pagaram por vacinas com mais de uma dose encontraram portas fechadas e reclamaram por não conseguirem obter ressarcimento. A reportagem não conseguiu localizar na última semana os responsáveis pela rede.
Em meio a casos como esse, o professor da USP diz ter dúvidas sobre a dimensão real do mercado. “Pode ser, em alguma medida, uma bolha.”
De dentro do negócio, diretores das clínicas dizem ver motivos para que não seja isso. “Mesmo que a economia melhore, dificilmente o SUS vai se recuperar a tempo”, afirma Vania Cardoso, diretora da clínica Megamed.
“Teve um reajuste dos planos recentemente, então vai vir mais paciente”, avalia Marcelo Abrahão, diretor da Fares.
Em junho, a Justiça limitou o reajuste anual de planos de saúde individuais ou familiares a 5,7%. Mas dias depois, outra decisão autorizou aumentos de até 10%.