fonte: Folha de SP
por Cláudia Collucci
Ano passado, entrevistei a mineira Vera Maria Pinho de Oliveira, 57, para uma matéria sobre medicamentos essenciais sendo retirados do mercado pelas farmacêuticas por falta de interesse comercial. Remédios seguros e efetivos que, por serem baratos demais, sumiram. Por mais imoral que possa parecer, isso é perfeitamente legal, as farmacêuticas só precisam avisar a agência reguladora (Anvisa) sobre a “descontinuidade” com uma certa antecedência.
Na segunda (3), Vera me telefonou. Com a voz trêmula e por vezes engolindo o choro, ela me atualizou sobre o seu drama. Com um linfoma desde 2009, ela diz que, por ter ficado no ano passado seis meses sem o medicamento Leukeran (que custava em torno de R$ 30 a caixa), a doença avançou.
Recebeu então indicação de uma quimioterapia, mas teve que interrompê-la após sofrer um choque anafilático. Ela tem agora indicação de um medicamento (Ibrutinibe) que custa em torno de R$ 36 mil a caixa. Mas o plano de saúde diz que não pode fornecê-lo porque a medicação não consta no rol de medicamentos/procedimentos da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar). A ANS, por sua vez, alega que o rol é atualizado a cada dois anos, mas que os planos podem fornecer terapias que não constam nele.
Sem medicação, Vera está cada dia mais debilitada. Por orientação médica, não sai mais de casa porque o seu sistema autoimune está muito enfraquecido. Ela pretende recorrer à Justiça.
De mãos atadas também se sente a família de Cauê Trés, de seis anos. O menino nasceu com linfangioma, uma lesão congênita dos vasos linfáticos que causa deformação dessas estruturas e que pode afetar face, pescoço e boca, entre outros. Há quatro anos sendo tratado no hospital A.C. Camargo com a substância bleomicina, Cauê vinha apresentando melhora, com a diminuição da lesão.
Mas em outubro do ano passado, o comércio da bleomicina foi suspenso pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) por problemas da fábrica do medicamento no México. Até março deste ano houve colaboração entre hospitais para que não ocorresse interrupção do tratamento. Porém, o estoque do remédio acabou e desde então Cauê e outras centenas de crianças e adultos estão sem a medicação.
“O linfangioma do meu neto está voltando. É desesperador não ter informações por parte da Anvisa”, diz a avó, Tania Trés. À Folha, a Anvisa disse que espera a fabricante do remédio regularizar a sua situação, mas que hospitais podem importar medicações não regularizadas. Muitas famílias têm buscado uma solução do impasse na Justiça. Alguns tiveram decisões favoráveis, outros não.
São dois dramas humanos dentre tantos outros que diariamente chegam às redações e que, possivelmente, vão parar nos Tribunais de Justiça. Se por um lado a judicialização da saúde tem desestruturado orçamentos públicos e da rede suplementar, consumindo mais de R$ 7 bilhões do SUS, por outro ela parece ser o único caminho possível para pessoas como Vera e Cauê.
Mas tem algo anterior a isso tudo que incomoda muito, o descaso com a vida humana. A falta de respostas efetivas faz com que essas pessoas sofram duplamente: pela doença em si e pela incerteza do acesso ao tratamento. E também leva à Justiça casos passíveis de solução antes do litígio.
Em São Paulo, um programa tem buscado atender às demandas do usuário sem a necessidade de ingressar com ação judicial. Em 2017, os gastos do governo paulista com esses pedidos encolheram pela primeira vez na atual década. Ainda está limitado à capital e arredores, mas parece ser uma saída promissora.
Nem sempre um acordo judicial será possível, mas a busca por soluções administrativas antes da ação judicial deve ser priorizada. Contudo, é preciso que as respostas do poder público e dos planos de saúde sejam rápidas e resolutivas. Ninguém suporta o jogo de empurra-empurra por muito tempo. A doença muito menos.