fonte: Revista Fapesp
Em agosto, o Brasil iniciou uma campanha de vacinação infantil em massa contra o sarampo e a poliomielite em meio a um quadro que causa apreensão. As taxas de imunização de crianças contra 17 doenças – entre elas o sarampo – atingiram em 2017 os níveis mais baixos em muitos anos. O Ministério da Saúde e especialistas em imunologia, epidemiologia e saúde pública ouvidos pela reportagem enumeram nove razões para explicar a queda abrupta nos números. Os motivos vão da percepção enganosa de parte da população de que não é preciso vacinar porque as doenças desapareceram a problemas com o sistema informatizado de registro de vacinação. Todas são causas plausíveis e prováveis e possivelmente atuam em conjunto. Elas, porém, ainda não foram quantificadas, o que ajudaria a identificar e a executar ações complementares às campanhas de vacinação para resgatar os níveis de imunização elevados do passado.
Uma consequência da redução no número de crianças vacinadas se tornou evidente com o surto de sarampo em Roraima e no Amazonas. A taxa de cobertura da tríplice viral, que protege da doença e alcançava 96% das crianças em 2015, baixou para 84% em 2017 e abriu caminho para o retorno da infecção ao país. Transmitido pelo ar, seu causador – um vírus do gênero Morbilivirus – provoca febre alta, mal-estar, tosse persistente, conjuntivite e deixa manchas vermelhas pelo corpo. Ele ataca as células do sistema imunológico e reduz por um período longo as defesas do organismo, favorecendo a ocorrência de infecções secundárias que podem matar. O vírus do sarampo havia sido eliminado do Brasil em 2016 e voltou agora via Venezuela. De fevereiro a 23 de julho, deixou 822 pessoas doentes – foram 272 casos em Roraima, 519 no Amazonas, 14 no Rio de Janeiro, 13 no Rio Grande do Sul, 2 no Pará, 1 em São Paulo e 1 em Rondônia – e causou cinco mortes.
O Ministério da Saúde reconhece a gravidade do problema. A socióloga e epidemiologista Carla Domingues, coordenadora-geral do Programa Nacional de Imunizações (PNI) do ministério, afirmou em um evento realizado em 26 de julho no Instituto de Infectologia Emílio Ribas, na cidade de São Paulo, que o surto atual de sarampo “evidencia nossas inadequadas coberturas vacinais e a urgente necessidade de melhorá-las”.
Além da queda na aplicação da tríplice viral, que também previne contra caxumba e rubéola, dados divulgados em junho pelo ministério mostraram redução importante em 2016 e 2017 na aplicação de outros nove imunizantes indicados para o primeiro ano de vida. Essas 10 vacinas estão disponíveis gratuitamente nas unidades do Sistema Único de Saúde (SUS) e protegem de 17 doenças causadas por vírus e bactérias que, até 40 anos atrás, matavam todo ano milhares de pessoas no Brasil ou deixavam parte com danos irreversíveis (ver no quadro como funcionam as vacinas).
Após permanecer elevada por mais de uma década para alguns imunizantes, a cobertura de seis vacinas despencou de 18 a 21 pontos percentuais em 2017, em comparação com 2015 (ver gráficos). Como resultado, 23% dos quase 3 milhões de crianças que nasceram ou completaram 1 ano em 2017 não haviam recebido proteção completa contra o vírus da poliomielite, que pode provocar paralisia permanente nas pernas e nos braços. Uma proporção semelhante ficou suscetível aos vírus das hepatites A e B, que lesam o fígado, e a bactérias associadas a infecções graves, como tétano, difteria, pertússis (coqueluche) e meningite. Só a vacina BCG, que estimula a produção de defesas contra bactérias que causam formas graves de tuberculose e é aplicada em dose única nas maternidades, atingiu os níveis de imunização recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS). A cobertura recomendada é de 90% para a BCG e a vacina contra o rotavírus, causador de diarreia severa. Para os demais imunizantes, é de 95%.
“É uma redução alarmante”, afirma o imunologista Jorge Kalil Filho, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e membro do Comitê Técnico Assessor em Imunizações (CTAI), órgão consultivo do ministério que avalia as estratégias do PNI e orienta mudanças no calendário vacinal. “O programa brasileiro é um dos mais bem-sucedidos do mundo. É muito ruim para a imagem internacional do país deixar as taxas de cobertura, que eram próximas de 95%, caírem para cerca de 80%”, afirma o pediatra Alexander Precioso, diretor de ensaios clínicos e farmacovigilância do Instituto Butantan, uma das instituições que produzem no país vacinas, soros e outros compostos imunobiológicos.
Em entrevista à Pesquisa FAPESP em 13 de julho, Carla Domingues relatou que, além do sarampo, outra preocupação atual é o risco de retorno da poliomielite. “A notificação de um possível caso de paralisia causada pelo vírus da pólio na Venezuela em abril causou um susto”, contou. Exames posteriores descartaram, em princípio, o vírus como causador da paralisia em um garoto de 2 anos e 9 meses, segundo boletim de junho da Organização Pan-americana da Saúde (Opas).
Ainda assim, há motivos para inquietação. Os números do ministério indicam que a proporção de crianças brasileiras imunizadas em 2017 contra a poliomielite é a mais baixa desde 2000: em média, 77% delas receberam as três doses injetáveis indicadas para o primeiro ano de vida. “É um problema nacional. A meta de vacinação não foi alcançada em 22 das 27 unidades da federação”, afirma a coordenadora do PNI. Mais grave: 312 municípios brasileiros (44 paulistas) estavam com menos da metade das crianças imunizadas.
Esses dados reforçam a importância da campanha atual, que prevê imunizar 11,2 milhões de crianças com mais de 1 e menos de 5 anos contra pólio e sarampo. “Ela estava planejada desde 2017”, conta a pediatra Helena Sato, diretora-técnica da Divisão de Imunização da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. “A cada quatro ou cinco anos, repetimos essas campanhas para zerar a proporção de crianças que deixaram de receber a vacinação de rotina.”
Iniciadas em 1980, as campanhas de vacinação em massa contra a pólio tiraram de circulação no país a forma mais agressiva (selvagem) do vírus – o último caso de paralisia infantil causado pelo vírus da poliomielite ocorreu em 1989 na Paraíba. Mesmo assim, elas continuam necessárias. “O vírus selvagem é endêmico no Paquistão, no Afeganistão e na Nigéria e o trânsito internacional de pessoas é grande”, conta Helena.
Quando confirmou a queda na vacinação, o ministério, segundo Carla Domingues, tomou as primeiras medidas: alertou os gestores municipais e as sociedades de especialistas da área da saúde. “Em reunião em 28 de junho com representantes dos estados e dos municípios, falamos do perigo da reintrodução da pólio e cobramos dos gestores municipais estratégias para aumentar a vacinação”, afirma. “Também conversamos com conselhos de classe e sociedades médicas, em especial as de pediatria, imunologia e infectologia, para que chamem a atenção de seus associados para o problema. São os médicos e os outros profissionais da saúde que devem recomendar a vacina.”
São ações iniciais – e tímidas – para lidar com um problema recente e de causas múltiplas, ainda não totalmente equacionadas. Carla Domingues e outros especialistas citam nove razões para justificar a queda na vacinação. Não se conhece, porém, quanto cada uma contribui para o fenômeno. “Ninguém sabe exatamente”, reconhece o epidemiologista Eliseu Waldman, professor da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP.
O ministério aposta mais em cinco razões: a percepção enganosa dos pais de que não é preciso mais vacinar porque as doenças desapareceram; o desconhecimento de quais são os imunizantes que integram o calendário nacional de vacinação, todos de aplicação obrigatória; o medo de que as vacinas causem reações prejudiciais ao organismo; o receio de que o número elevado de imunizantes sobrecarregue o sistema imunológico; e a falta de tempo das pessoas para ir aos postos de saúde, que funcionam das 8h às 17h só nos dias úteis. Esses motivos são os mais mencionados nos monitoramentos feitos em municípios brasileiros em seguida às campanhas nacionais – no estado de São Paulo foram visitados 58 mil domicílios após a campanha de 2017. “Esses fatores podem interferir na cobertura vacinal, mas não são os únicos”, afirma Carla. “Também identificamos relatos de médicos e outros profissionais da saúde que aconselham as pessoas a não se vacinarem contra as doenças que não existem mais no país.”
Alguns especialistas interpretam a percepção de que não é mais preciso se vacinar como efeito do sucesso das medidas de imunização. No século passado, diferentes estratégias – vacinação de rotina, imunização em massa ou de bloqueio (para conter surtos) – eliminaram a febre amarela urbana em 1942 e a varíola nos anos 1970. Com a criação do PNI em 1973, as ações se tornaram sistemáticas e ajudaram a dar fim à pólio e a reduzir os casos de sarampo, coqueluche, tétano e formas graves de tuberculose.
“Por causa da imunização, não existem mais casos de muitas dessas doenças e passam a prevalecer as notícias de eventos adversos da vacinação, que são raros”, afirma Precioso, do Butantan, membro da Comissão Permanente de Assessoramento em Imunizações do estado de São Paulo. “As novas gerações nunca viram essas enfermidades e não as temem”, conta Kalil, da USP, que teve colegas com pólio nos anos 1960.
A origem do problema, segundo o ministério, não é falta de vacinas, apesar de terem ocorrido reduções temporárias de abastecimento de alguns imunizantes por problemas de produção. “As compras não diminuíram. No Brasil, não há contingenciamento de recursos para a aquisição de vacinas”, afirma Carla Domingues. “O PNI integra uma rubrica do orçamento do ministério que tem execução obrigatória.”
Em 22 anos, o gasto do programa com a compra de imunobiológicos (vacinas, soros e anticorpos) cresceu 44 vezes: de R$ 94,5 milhões em 1995 para R$ 4,2 bilhões em 2017, valor 30% superior ao de 2015 (ver gráfico). No período, aumentou o número de doses adquiridas para abastecer a população, que passou de 160 milhões para 208 milhões, e a diversidade de imunizantes. Hoje o programa atende também jovens e adultos fornecendo 28 vacinas, que estimulam o organismo a produzir defesas contra agentes infecciosos, e 13 soros e quatro anticorpos, que neutralizam diretamente os microrganismos invasores ou compostos tóxicos liberados por eles.
Identificamos relatos de médicos que aconselham as pessoas a não se vacinarem, conta Carla Domingues
“O calendário ficou mais complexo. Eram seis as vacinas para crianças nos anos 1990. Hoje são 14”, conta a médica sanitarista Rita Barradas Barata, da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. “Se o pediatra não orienta, as mães não sabem quais delas os filhos devem tomar”, relata a pesquisadora, que realizou quatro inquéritos sobre a cobertura vacinal em cidades brasileiras.
No mais recente, financiado pelo ministério, equipes coordenadas por Rita e seus colaboradores analisaram em 2007 e 2008 a carteira de vacinação de 17.295 crianças com até 1 ano e meio de idade em 26 capitais e no Distrito Federal. Um quarto da população brasileira reside nessas cidades, onde uma em cada cinco crianças não tinha recebido todas as vacinas que deveria, segundo artigo publicado em 2012 no Journal of Epidemiology and Community Health. A proporção de crianças com o esquema de vacinação incompleto era significativamente maior (22,8%) na parcela mais rica do que nos extratos mais pobres (variou de 13,8% a 18,8%). Essa relação aparentemente contraditória – espera-se que pais mais bem informados e com melhor condição financeira tenham mais acesso a vacinas – foi observada em oito capitais, entre elas as três mais populosas: Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte. “Nas cidades menores e com rede de assistência pública mais precária, os mais ricos vacinam mais porque moram em bairros com postos de saúde ou têm acesso a clínicas particulares. Nas maiores, a rede pública é mais ampla e mais bem estruturada e os mais pobres se vacinam mais”, conta Rita.
Os níveis de vacinação também parecem depender do vínculo das famílias com o serviço de saúde. Sob a orientação de Waldman, da FSP-USP, a enfermeira Márcia Tauil acompanhou de 2012 a 2014 a cobertura de vacinação de 2.612 crianças de Araraquara, no interior de São Paulo, atendidas no serviço público, no privado ou em ambos. A cidade de 226 mil habitantes foi pioneira no país ao implantar um sistema informatizado de registro de imunização nos anos 1980. No doutorado, concluído em 2017, Márcia verificou que as crianças atendidas apenas nas unidades públicas tinham probabilidade maior de estar com o esquema de vacinação em dia do que as que passavam por atendimento em clínicas privadas ou misto. O motivo? Um vínculo maior com a unidade de saúde. “Nesses serviços, há uma ênfase no treinamento dos profissionais para que incentivem a vacinação”, diz Waldman.
Não se descartam como causas da queda na vacinação a influência de notícias falsas que circulam nas redes sociais e uma incipiente ação de grupos contrários à imunização. Reportagem de maio de 2017 do jornal O Estado de S. Paulo identificou no Facebook cinco grupos brasileiros antivacina com cerca de 13 mil integrantes. “Monitoramos e tentamos dar uma resposta ágil às fake news, mas acreditamos que ainda não existam grupos antivacina estruturados como os do exterior”, conta Carla Domingues. Na Europa e nos Estados Unidos, são mais comuns os grupos que não aderem à vacinação por se embasarem em notícias inverídicas ou alegarem razões religiosas e filosóficas. Estudo publicado em junho na PLOS Medicine relata que, de 2009 a 2016, passou de 12 para 18 o número de estados norte-americanos em que os pais não vacinavam os filhos por razões filosóficas – nesses estados, a proporção de crianças protegidas contra sarampo, caxumba e rubéola era menor do que nos demais.
Os movimentos antivacina ganharam força depois que o cirurgião Andrew Wakefield publicou em 1998 na Lancet, respeitada revista da área médica, um trabalho insinuando que a tríplice viral (contra sarampo, caxumba e rubéola) estaria associada ao autismo. Estudos posteriores refutaram a conexão e mostraram que Wakefield tinha ações de uma empresa que propunha o uso de outra vacina. Sua licença médica foi cassada, mas o estrago estava feito e ressurgiram surtos de sarampo na Europa (ver Pesquisa FAPESP nº 181).
Parte da queda nos números da cobertura vacinal no Brasil também é creditada à mudança no sistema de registro de imunização, iniciada em 2012 e ampliada nos dois últimos anos. No sistema anterior, os profissionais das salas de vacinação registravam em papel cada dose administrada ao longo de quatro semanas. Ao final do mês, consolidavam os dados e os encaminhavam à gerência de vigilância epidemiológica do município, que abastecia o Sistema de Informação do SUS (DataSUS). Para isso, bastava um computador em cada um dos 5.570 municípios conectado à internet.
O Sistema de Informações do Programa Nacional de Imunizações (Sipni), que substitui o anterior, exigiu a instalação de computadores nas 36,2 mil salas de vacina e o treinamento dos funcionários. O Sipni registra o nome e os dados pessoais de cada indivíduo vacinado e as doses que recebeu. Essas informações ficam disponíveis para salas de vacinação e postos de saúde de todo o país (algo importante para o caso de reações adversas), permitindo recuperar facilmente os dados quando se perde a carteira de vacinação. Também torna possível que Brasília tenha o registro quase em tempo real do número de doses aplicadas. O Sipni está instalado em 24.388 salas de vacinação (67,4% do total) de 5.257 municípios. Há duas modalidades do sistema em operação: a mais recente, on-line, com transmissão de dados em tempo real; e a anterior, versão de desktop, em que o preenchimento é feito off-line e os dados são enviados no fim do mês para o DataSUS. Um dos entraves é a necessidade de constantes aprimoramentos e atualizações da versão desktop nas salas que a utilizam. Também ocorrem problemas de transmissão de arquivos em municípios que usam sistemas informatizados próprios, o que pode ocasionar diferença entre os dados locais e os números consolidados em nível nacional. “Não sabemos qual a contribuição dos problemas no sistema para a queda nos números da cobertura vacinal, mas isso não explica tudo”, afirma Helena Sato, que também integra o CTAI.
Em nota enviada pelo setor de imprensa, o Ministério da Saúde afirma que “tanto os municípios que utilizam o sistema anterior como os que usam o Sipni apresentam baixas coberturas vacinais”. Carla Domingues afirma não ter como saber, a partir do Ministério da Saúde, em Brasília, o que ocorreu em cada cidade do país. As vacinas compradas pelo ministério e enviadas aos estados podem não ter chegado ou ter chegado e os pais não terem levado os filhos para imunizar. Também é possível que tenham chegado, os municípios vacinado e não registrado ou que tenham feito tudo certo sem conseguir enviar os dados para o Ministério da Saúde. “Cada município tem de identificar o que ocorreu”, afirma Carla. “O importante no momento é que haja uma mobilização nacional para resgatar coberturas elevadas e homogêneas.” Em São Paulo, Helena Sato e sua equipe planejam realizar neste ano um estudo detalhado para identificar onde estão as pessoas não vacinadas e medir os fatores que mais influenciam a decisão de não tomar vacina.