fonte: O Globo

por Lígia Bahia

Grande parte dos especialistas em saúde ganha a vida apresentando gráficos de “boca de jacaré”, nos quais demandas e custos da assistência aumentam exponencialmente, e os orçamentos públicos se mantêm inferiores. A visualização da distância entre a escalada das expectativas de vida longa e boa e os limites fiscais e de fundos dos planos privados impacta audiências e facilita a vida dos vendedores de soluções fáceis. Desde os anos 1970, plateias ávidas pelo fim da “crise” na saúde recebem com entusiasmo sugestões infalíveis para pagar menos a médicos e hospitais. A maior parte dessas tentativas virou chavão porque ignora normas legais e debates éticos há milênios sobre a cobrança de serviços de saúde e a existência de indústrias farmacêuticas e de equipamentos e instituições assistenciais que modulam valores e preços. Antes dos seguros sociais e privados e da filantropia moderna, médicos europeus recebiam honorários (agradecimentos pecuniários voluntários) ou “remuneração razoável” (princípios legais voltados a diferenciar a prática médica do comércio). Nas colônias americanas, os médicos passaram a cobrar o que os pacientes podiam pagar. Nos anos 1930, uma grande cirurgia equivalia a um mês de salário do paciente. A ideia prevalente era majorar preços para os mais ricos para subsidiar o cuidado aos pobres. Caridade e as taxas razoáveis se complementavam. A filantropia moderna, seguros, sistemas baseados na oferta pública e os insumos industrializados representaram uma sentença de morte para a remuneração segundo a capacidade de pagamento. Subsídios cruzados de doações, pré-pagamentos (contribuições, impostos e mensalidades de planos privados) estimularam a padronização de tabelas de remuneração (que admitem sobretaxas e descontos). Negociações com médicos, hospitais e unidades diagnósticas se baseiam em uma combinação de preços tabelados de procedimentos, isenções fiscais e volume de serviços. Governos e seguradoras pressionam pela redução dos preços, e os prestadores buscam estimular exames e internações, assim como impor tabelas especiais para recuperar e ampliar investimentos. Essa tendência vale para o Brasil, com as devidas adaptações aos significados particulares dos termos filantrópico e lucrativo. Na nossa história, filantropia — como doação de recursos materiais ou tempo para causas sociais e empreendimentos privados, completamente desvinculados do Estado — na área da saúde foi mera idealização. Aportes e intervenções estatais estiveram por trás dos empreendimentos sem fins lucrativos. Hospitais privados se expandiram por meio da venda de seus serviços ao público, e existe oferta de parte da capacidade instalada estatal para os planos privados de saúde. Esse mosaico institucional, baseado no uso móvel dos sentidos de público, privado e filantrópico, se estabilizou mediante uso intensivo de energias individuais de lideranças setoriais, articulações políticas e compromissos com demandas profissionais e corporativistas.

A tabela SUS, com preços médios muito inferiores aos dos planos de saúde, costuma ser complementada por orçamentos municipais e estaduais. Algumas instituições como o Hospital de Barretos, Instituto do Cérebro do Rio de Janeiro, entre outras, também recebem doações de empresas. É o SUS que vive na pindaíba, mas organizou um programa exemplar de Aids, faz transplantes e introduziu inovações gerenciais como a atenção primária.

O SUS precário contrasta com poucos hospitais filantrópico-privados, cujos preços são muito superiores aos privados, direcionados quase que exclusivamente aos ricos, funcionários qualificados do Legislativo e Judiciário, famosos e até alguns mal afamados. São estabelecimentos movidos por renúncia fiscal e acelerada incorporação tecnológica que jogam as despesas assistenciais para cima. Esse excêntrico arranjo filantrópico superavitário recebe relativamente poucas doações, mas faz caridade com dinheiro público: ensina gestão para o SUS dos pobres. Gestão focada no jacaré que jamais abriu a boca.